24 de maio de 2012

O sol de todos nós





Não, não era pintor. Mas um dia  pediu uma tela, uma grande tela onde coubesse o mundo visto pelos seus olhos.
Escolheu na loja os pincéis mais macios, sentiu o veludo das cerdas deslizando sobre a pele como se fossem carícias, soube-os seus e fechou os olhos para guardar no coração esse ponto indefinido de pertença. A maior dificuldade, foi ter-se visto perdido no imenso colorido das tintas. Queria-as todas, mas desconfiava que não teria tempo para se dedicar a cada uma em particular e, nesta impossibilidade, seleccionou sete, porque sete eram as cores da ponte que lhe elevava o sonho até ao céu, o céu que lhe crescia no peito e sabia existir, muito para além da dúvida contida nas nuvens. 
Escolheu o local,  a janela grande por onde lhe entrava a luz todas as manhãs. Todas? Bem, quase todas, porque havia dias de muita sombra, dias enormes de luz impossível. 
Não respondeu a perguntas, estava cansado de perguntas. Mesmo porque não havia resposta possível para aquela urgência de dizer o que não sabia, de fazer sair de si algo que fosse maior do que o seu  próprio tamanho. 
Não haveria respostas, estava cansado da ausência de respostas.
Fez-se à obra nos dias seguintes, como quem lê as derradeiras páginas de um livro e pressente o rumo da história, querendo acreditar num final diferente para a personagem.
Com sete cores e em sete dias, as mãos pequenas do Carlos pintaram aquele sol radioso  num céu de nuvens, a surgir ou a desaparecer, nunca saberemos, sobre o limite do mar. Estava feliz quando disse - Este é o meu sol, é para vocês.
Aos nossos olhos, aquele foi um momento inspirador, rasgado do interior da angústia. Chegou-nos assim, preso no último fio de lágrimas que a custo  se continham. Chegou-nos assim, a ensinar-nos uma nova forma de tecer, colorida, a palavra esperança.
Pendurámos o quadro na parede principal do serviço, a maior, aquela que o merecia e onde nos sentiríamos sempre iluminados. Afinal, aquele era o sol de todos nós.
O Carlos  foi um menino de 10 anos que morreu poucos meses depois de nos oferecer aquele quadro.
Hoje, apeteceu-me lembrá-lo aqui.  É que há crianças que gastam a vida à procura de vida. Nunca desistem e, antes de a perderem completamente, entregam-nos tudo o que conseguiram encontrar. 
E isso é tanto!



Nota - O quadro acima não é  o " sol" do Carlos, mas poderia ser, embora diferente aos olhos de cada um, o sol é o mesmo para todos nós. 

14 comentários:

Lídia Borges disse...

Receber um sol talhado à medida de um coração de criança é algo tão grande que não cabe nas palavras que tenho à mão, neste momento.

Tens tantas e tão belas histórias para partilhar!
Obrigada por esta, tão bonita e tão comovente.

Beijo

Mar Arável disse...

Ainda há sol

que seja por uma nesga

mas há sol

Bjs

rosa-branca disse...

Olá João,um Sol nascido de um coração de uma criança, acho que consegue iluminar o mundo inteiro. O Carlos ofereceu-vos a luz que tinha. Se mais tivesse, mais tinha dado. Amei essa linda homenagem. Beijos com carinho

Maria disse...

Não tenho palavras.
Nunca tenho pelavras quando se trata de situações destas. Só me apetece fugir...
É com um imenso nó na garganta que te deixo um abraço.

Rogério G.V. Pereira disse...

Por um momento
Senti esse sol a iluminar-me por dentro

Hanaé Pais disse...

Um sol, um menino, a luz, a cor e a morte sem esperança.

Mas ficará sempre e para sempre na sua lembrança.
Que se proteja a vida, as ilusões e os sonhos de uma criança.

Um pequeno gesto com o calor e a cor do sol numa sentida homenagem, sem o sopro da vida e da infância.

A.S. disse...

Maria João!

Emoção e ternura foi o que senti. Não foi por mero acaso que o Carlos desenhou um sol!...


Um abraço!
AL

Fá menor disse...

Ternura... e uma lágrima ao canto do olho.
Os melhores exemplos surgem-nos por mãos pequenas...

que nunca o sol deixe de brilhar nas mãos de uma criança.

Bjinhs

António Gallobar - Ensaios Poéticos disse...

Olá querida amiga

Lindissimo texto, com uma mensagem fantastica. Adorei passar por cá

Beijinho

Filoxera disse...

Saio daqui com o mar nos olhos e um arrepio à flor da pele...
Um abraço.

Bergilde disse...

Muito tocante esse relato.Serviu-me muito hoje especialmente quando tenho lido e visto tanta notícia desagradável e catastrófica.
O olhar da criança a nos ensinar, encontrando luz apesar de tudo.
Abraços,

Nilson Barcelli disse...

Uma história comovente e tão bem contada.
Beijo, querida amiga.

Cris Tarcia disse...

Que lindo! Emocionante


Beijos

AC disse...

Porque somos eternos construtores de algo, há factos que dificilmente a nossa sensibilidade aceita. E ressentimo-nos, mas mais não nos resta que continuar. É essa a dignidade.

Beijo :)