27 de novembro de 2009

Desafios (1)

Antonio Gallobar lançou-me um desafio, que não sendo o primeiro que aceito, será o primeiro ao qual responderei.
Um pouco de mim em cinco revelações, é o que me pede.
A tarefa não é díficil, uma vez que falar de mim é quase como jogar em casa. Contudo, escolher apenas uma, das várias respostas possíveis, já exigiu alguma ponderação suplementar.
São cinco então, as frases que vos deixo. Elas apenas revelam pequenos fragmentos da minha forma de estar, pensar e sentir .

Eu já tive…. mais confiança na justiça. Agora, sinto que alguma coisa terá de mudar, antes que o descrédito seja total e a anarquia se instale.

Eu nunca… serei capaz de recusar ajuda a alguém que realmente precise dela.

Eu sei …. que sou boa pessoa, mas todos os dias luto contra as minhas imperfeições. Procurar sempre melhorar o que sou, é para mim um desafio e um dever , enquanto ser humano.

Eu quero … um dia fazer parte das missões humanitárias que levam àqueles que sofrem, o pouco que faz a diferença.

Eu sonho…. com o desenvolvimento de um neurónio específico, no cérebro humano, que torne impossível qualquer acto de abuso, negligência ou maltrato a uma criança.
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Como não consigo escolher ninguém em particular para continuar o desafio, deixo-o assim, como que pendurado na maçaneta desta minha porta, a quem o quiser levar.
Será que alguém o pega?

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24 de novembro de 2009

Inquietação de inverno




Oiço o inverno a chegar, quando à noite vencem os cansaços
O meu corpo abraçado nos meus braços
E o vento em desalinho, a sussurrar

Penso na chuva a cair, que se oferece à natureza
Mas penso também na pobreza
De quem não tem onde dormir

Ao som do mar revolto eu adormeço, acreditando a sonhar
Que esta tristeza que não esqueço
Seja a minha alma a rezar

A rezar por alguém igual a mim, que eu não conheço
Que fugindo ao frio, não tem onde se abrigar



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17 de novembro de 2009

Hoje canta o poeta...



JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS






CAVALO À SOLTA





Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve
breve instante da loucura

Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa

Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo

Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.

Minha laranja amarga e doce
Minha espada
Poema feito de dois gumes
Tudo ou nada
Por ti renego
Por ti aceito
Este corcel que não sossego
À desfilada no meu peito

Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo

Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura
Minha ousadia
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura


... na voz de Fernando Tordo e ...na voz de Viviane


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13 de novembro de 2009

Identidade


Sou assim…
Sou casa em ruínas, abrigo de estrelas
Paisagem deserta, nascente de rio
Sou capa, sou xaile tremendo de frio
Sou espelho e vidraça das tuas janelas
Sim, eu sou assim…
Um Ser de silêncio, fiel companheiro
Que acalma e que beija a alma que dói
E em mudas palavras, se dá por inteiro
Semeando gritos que o vento destrói
Sou...
Sou amarra, sou asa
Sou contradição
Sou nuvem que passa
Sempre em solidão
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11 de novembro de 2009

Inspiração para um magusto


OS SIMPLES

Pela estrada, que entre cerejais ondeia,
Uma pequerrucha, Tró-la-ró-la-rá!
Vai cantando e guiando o carro para a aldeia.
Com um castanheiro apodrecido já.

Castanheiro morto! Que é da vida estranha
Que no ovário exíguo duma flor nasceu,
E criou raízes, e se fez tamanha
Que trezentos anos sobre uma montanha
Seus trezentos braços de colosso ergueu?!

Em casal de Serras arde o castanheiro
Lâmpada de pobres a fazer serão;
De redor no grande festival braseiro,
A velhinha, o velho, o lavrador trigueiro,
A mulher, os filhos, o bichano e o cão.

Como não sentir um estranho afecto,
Se lhe dera a trave que sustenta o tecto,
Se lhe dera o berço onde repoisa o neto,
Se lhe dera a tulha onde arrecada o pão!

Fez com ele o jugo e fez com ele o arado;
Fez com ele as portas contra os vendavais;
E com ele é feito o velho leito amado,
Onde se deitara para o seu noivado,
E onde já morreram seus avós, seus pais!

Eis as brasas mortas... Ei-lo já converso
O castanheiro em cinza, o fumo vão, em luz...
Luz e fumo e cinza tudo irá disperso
Reviver na vida eterna do Universo
Círculo de enigmas que ninguém traduz...

Guerra Junqueiro

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5 de novembro de 2009

Amor em arco-íris




Entre as cores do arco-íris te encontrei
envolto nesse manto de perfume
o meu corpo cego de queixume
e o teu, sedento de paixão
Desnudámos com ternura, beijos loucos
em sedas de carícias tão guardadas
sossego de almas desejadas
sol e chuva em união
Foi assim que o nosso céu se coloriu
quando pintámos de amor a alvorada
num tempo em que não esperando nada
Uma doce lua nos sorriu


1 de novembro de 2009

O último pão por Deus


Era com a Fá e com a Belita que todos os anos eu percorria as ruas do meu bairro e arredores, com o saquinho apertado na mão. Mais velhas e mais afoitas, elas iam sempre à frente enquanto eu, querendo fazer-me pequenina, escondia-me atrás delas.
Porta a porta, nenhum batente ou campainha escapava à vontade irresistível de saber, qual a surpresa que nos reservavam as mãos gentis que quase sempre franqueavam a entrada.
Gostava daquele ritual e deixava sempre que a alegria das minhas amigas de infância me contagiasse. Mas havia alguma coisa no pedido de pão por Deus, que me empurrava para terceiro lugar na fila. Não sabia explicar, mas era como uma falsa declaração de fome que na realidade eu nunca tinha sentido. Uma mentira autorizada em nome da tradição, a que todos achavam graça. Ou quase todos.

- Então Maria João, não abres a tua saquinha?

E sem saber se primeiro agradecia ou abria o saco, fazia as duas coisas ao mesmo tempo e lá dentro misturava a vergonha com as castanhas e as bolachas já desfeitas, mais os rebuçados que melavam as romãs, as maçãs, os escudos e os centavos .
Um a um, conhecidos e desconhecidos, amigos e parentes eram chamados à oferenda e raras eram as portas que não se abriam. Os sorrisos adoçavam os pequenos nadas que enchiam as nossas saquinhas e a pouco e pouco, faziam-me sentir menos culpada por pedir algo que eu achava não necessitar.
E assim foi, durante pelo menos três ou quatro anos, sempre no dia 1 do mês de Novembro.
A última vez, calhou-me a mim bater àquela porta. Tinha oito anos e não conseguia já esconder-me atrás de ninguém.

- O que querem vocês, miúdas?

- Vimos pedir pão por Deus - disse eu quase a medo.

- Vocês têm cá uma lata… então com um corpinho já tão jeitoso para trabalhar, vêm pedir pão, logo no dia em que o padeiro não trabalha!? Tenham mas é juízo!

Fomos embora, mas apenas elas continuaram. Eu voltei para casa. Lá , o pão nunca faltava, mesmo nos dias em que era feriado.
No caminho, fui a pensar que realmente não estava certo, pedir pão quando não se tinha fome, mesmo que fosse em nome de Deus. Mas também não estava certo, falarem assim, daquela maneira, com as criancinhas!