31 de março de 2012

Vazia de azul





No mar

a espuma amarga
uma revolta
um fundo mais fundo
areia coberta de pedras

e  na minha boca

uma voz ferida
resignada
vazia de azul
a morrer-me de silêncio.


27 de março de 2012

Nuvens pesadas



« Nuvens pesadas suspensas sobre muitos homens não os deixam pensar.
Ainda que ergam a cabeça, estão isentos de ideias, de contrições e de amor.

É uma formula: um homem dedica o seu dia à escuridão do gesto, submete o corpo aos instintos mais pesados, toma banho de pijama, não olha pela janela nem atravessa pontes.

E o resultado: um dia de chumbo em excesso para o somatório de cicatrizes,
um nível abaixo do penteado.

A liberdade é, nestes casos, o maior desperdício de um homem-livro, uma tirania difícil de inalar.


Dão-lhe poesia e ele escreve tempestades.»


MENDES, Sílvio (2011: p. 46), Inéditos in: Golpe d'Asa
fotografia de Carlos Gotey

21 de março de 2012

Poesia



Disseram-te que sem palavras morrerias
num ponto qualquer indefinido
de tristeza.
Por isso vens, todos os dias
nascer à beira do lago dos poemas
para que os poetas, descalços
te contemplem
e sorvam da  pureza dos teus verbos
os  versos
capazes de nutrir o coração dos homens.



16 de março de 2012

Talvez me arrume...



Acordo para lá das horas, quando o dia já se viveu pela metade.
Uma espécie de caos instala-se em mim, invade-me as têmporas, cega-me os olhos, e rouba-me a harmonia em que sempre me protejo, como num casulo vazio de dúvidas.
Não sei o que me preocupa e, no entanto, tenho a mente ocupada de palavras, como se uma rebelião se anunciasse dentro do meu cérebro. Tropeço em mim e, na desordem, procuro organizar este amontoado de pensamentos que me interrogam, desarrumando as coisas certas. Olho-me ao espelho e não gosto de me ver aqui. Olho o meu corpo e não entendo, o que faço eu, regressada em atraso, a este espaço que me é cubículo de palavras. Queria não o ter habitado. Queria não ter voltado. Queria ser livre para me poder estender sobre as nuvens e deixar tombar, na terra ainda humedecida pelo choro da noite, este peso que me rouba o movimento espontâneo de mim mesma, sobre a superfície corpórea das coisas, onde me penso. Onde sou. Onde penso que sou.
Mas a terra já secou, na metade do dia que deixei morrer de inutilidade.
Escrevo.
Escolho ver-me no desenho das letras. O sol já vai alto, e talvez seja mais fácil descobrir na forma das minhas sombras, a mesquinhez da minha existência, e render-me assim, à grandeza do verbo que vive da eternidade do tempo em que se soletra, nos olhos de alguém. Escrevendo, talvez encontre utilidade nas mãos agarradas a estes braços que já se saturaram de mim, e solte dos dedos, uma espécie de ânsia de voar, aprisionada por esta minha natureza solitária. Escrevendo, talvez me arrume junto do entendimento das coisas inexplicáveis e, talvez, quem sabe, alguém me veja por dentro.



12 de março de 2012

Instantes escassos





Abre as mãos
e recebe a espuma do mar
são assim os dias felizes
claridades diluídas na concha das tuas mãos
instantes escassos
suspensos no movimento permanente das marés
a resistirem à fragilidade dos teus dedos.

Abre as mãos e abriga na alma
o que em ti fermentará
até ser
a vastidão do oceano que procuras.


9 de março de 2012

O que é extraordinário é a vida.



“ O que acho cada vez mais extraordinário é a vida!  A maravilha que é estarmos vivos.
É das coisas realmente excepcionais, estarmos vivos e lidarmos com vivos. Isso é que é o fundamental da minha experiência.
E agora, com esta experiência de doença que tenho tido, tenho aprendido o valor de certos pequenos instantes."


3 de março de 2012

Jardim de amores-perfeitos



Desfez-se o afogo das paredes
O sol arrumou-se no peito
E aqueceu o inverno das coisas.

Sem pressa

A cor foi tomando conta das memórias cinzentas
E a névoa levantou-se do meio das árvores

Coada no tempo

Escorrida
 Do silêncio nocturno da alma dos poetas.

De céu aberto
O jardim revela-se
Um coração arado de terra doce
Terra que é mãe, 
Sorriso eterno de primavera
Que traz no regaço o saber ameno
Onde florescem os amores-perfeitos.