27 de janeiro de 2011

Para que reze (de novo) a história...


Filho da Azinheira, como gostava sempre de dizer, nasceu naquela pequena aldeia do concelho de Oleiros, num tempo em que o mundo se circunscrevia ao perímetros dos pinheiros a perder de vista . Estes rodeavam as casas feitas de pedra e divisórias em madeira que hoje em abandono e ruínas ainda lá permanecem, apenas para fazer lembrar a história.
Em pequeno era traquinas, dizem!
Filho de gente pobre, guardava cabras com os irmãos, depois de chegar da escola, pelo meio daqueles montes e vales onde o pai era resineiro.
A mãe, cuidava da horta onde às vezes também plantava linho e tratava do porquito, que mais tarde haveria de salgar, curar os seus presuntos e os enchidos que dariam sustento à família.
Sempre mostrou orgulho pelos pais, e pela suas origens. Sempre nos transmitiu isso.
Aventurou-se por Lisboa ainda muito novo, apoiado pelo irmão mais velho. Foi empregado de mesa, e aproveitou ao longo da vida, todas as oportunidades para se tornar exímio nessa arte.
Foi militar de paz e de guerra, e foi nessa guerra que acabou por permanecer sobrevivo , sem nunca lhe ter encontrado, verdadeiramente, um sentido.
Foi um especialista na minúcia da construção de um selo. Foi um homem rigoroso, orgulhoso e por vezes austero.
Nem sempre compreendeu e nem sempre foi compreendido. Mas foi um homem simples na sua essência, que soube transmitir, por linhas direitas e tortas, os valores do dever e da honra, da humildade e do trabalho.
Nem sempre foi a melhor pessoa, o melhor marido ou o melhor pai. E soube reconhecê-lo.
Fez um percurso, o seu percurso. Com ele condicionou outros, é verdade. Mas também foi condicionado!
Não deixou de aproveitar a segunda oportunidade que a vida lhe deu para ser diferente. E conseguiu. Orgulhou-se de o ter feito e eu também!
Foi meu Pai!
Faz hoje dez anos que partiu, e com tudo o que foi e o que viveu, continuará sempre presente na memória e na vida das suas filhas.



( Reedito este texto escrito há dois anos, porque há coisas que apenas se escrevem uma vez na vida e permanecem eternas com o passar dos anos. )


23 de janeiro de 2011

Cordão de água


Dos seus olhos, do espaço inundado pela linha de água que envolve o caule dos nenúfares, viu-a sentada na escarpa a desfolhar folha a folha, as páginas do seu próprio poema.
Cinquenta páginas, cinquenta vidas, cinco flores nos sentidos de uma só mão e na outra, a silhueta redonda mundo.
Ouviu-lhe a oração das contas, rosário de dores e sonhos, presos ao mastro de uma frota de caravelas perdidas, em terras de mouros, carregadas de esperança, dentro do seu próprio tempo.
Soube-a doce e salina no entrelaçar do cordão de água, movimento pendular dos dias em espera.
Escutou-lhe o saber do corte dos cachos, da colheita fértil das searas e do perfume das pétalas caídas.
Ofereceu-lhe de beber, mas ela já era água.
Estendeu-lhe a mais fina das algas, mas ela era já, o fio mais precioso de Ariana.
Falou-lhe das palavras escritas no silêncio, mas eram já silêncio todos os seus versos.
E nada mais tendo para lhe restituir de sol, desprendeu de si a lágrima dourada caída de uma das cinco pontas de uma estrela e, de mansinho, colocou-a no alinhamento da constelação que celebra a vida, sinal e vértice perfeito da luminosidade daqueles olhos. Colocou-a ali, para que fosse a luz do seu caminho e lhe revelasse a transparência fina, para além da poeira das incógnitas.
Depois, em silêncio, regressou ao lado de lá do espelho, ao leito do seu próprio rio e cravou os joelhos nos seixos seculares, onde guardava todos reflexos.


18 de janeiro de 2011

Momentos...



Sabes porque te pedi que viesses?

Sorriu ao calor dos olhos dela que de tão ansiosos, lhe queimavam o rosto de interrogação.
Inspirou do silêncio o vaguear sereno de quem tem tempo e nas suas mãos, aninhou as outras. Pérolas protegidas da aragem fria.

Olha, anuncia-se o desabrochar das magnólias!


12 de janeiro de 2011

A viagem



Partiu destemida pela noite dentro, sem xaile que lhe cobrisse o espanto de se descobrir nas sombras. Queria perceber-se no perfil sinuoso de cada uma das fases da lua e virar do avesso todas as costuras do tempo. Queria saber-se inteira, ver-se sangrar em cada aresta, na rugosa imperfeição que sentia pertencer-lhe, tão eterna.

Naquilo que lhe pareceu durar o breve movimento das pálpebras, fechou os olhos e soube do medo à espreita do intervalo vacilante dos seus passos. Mas logo à frente, aquela vontade, atraindo-a, como uma verdade atómica, para o fundo de si, sem receio de sentir todos os ângulos no contorno das dúvidas ou, as diferentes texturas que a habitavam, há tanto tempo já.

Algo lhe apontava ali, a direcção do sol que haveria de penetrar de mansinho, em cada frincha desbravada da sua escuridão e iluminaria, um a um, todos os seus espaços. Algo lhe dizia que só assim, poderia entender o magnetismo das estrelas e o quanto aceitar-se, pode ser o mais doce e sereno início de uma viagem feliz, de braço dado com o mundo.


6 de janeiro de 2011

Hoje...


Hoje...
a vida amanheceu
como se o universo
se despisse do tempo
e uma nova luz eclodisse
do lado de dentro da chuva,
para aconchegar
o coração dos pássaros.

Hoje...
escreveu-se amor
no contorno branco
das nuvens mansas
e os deuses
riram e choraram
felizes,
com as voltas do mundo.


4 de janeiro de 2011

Sem poesia


Quando deixaste o amor suspenso
num trémulo segundo de uma hora incerta,
tentei beijá-lo com a estrofe mais suave,
a mais singela e a mais perfeita,
para que não voasse.

Não sabia ainda que na tua alma já não vivia o verso,
nem que a minha vida deixara de ser poema.


Depois disso
o silêncio tornou-se um hino
e eu
um anjo aprisionado
na minha própria harpa.