28 de outubro de 2010

Cumplicidade


É ser do ventre,
a polpa de fruto diferente
e ser no gesto cruzado,
o reflexo nascente,
verso de um mesmo lado.

É ser presente, no olhar de frente
e ser fio de luz que brilha
num sol já iluminado.
É ser beijo e aguarela
tela de mundo inteiro,
é ter nas mãos um canteiro,
onde cresce trigo doce
e seara de centeio.

É partilhar ternura
num jardim, a duas mãos semeado,
é sentir perfumado o futuro
num coração que pula,
com outro a ele agarrado.



À Teresa e à Inês....
simplesmente porque festejam seis anos de cumplicidade!!
(As fotos pretencem-lhes e a sua publicação, teve autorização prévia)

26 de outubro de 2010

Tango triste


René Magritte - The Lovers (1928)


Há corpos que dançam sem a rítmica alquimia da pele, no desacerto da vida.
E sem saberem dos compassos, deixam cair nos ombros as franjas de uma alma exposta às gotas da chuva, e nela se alagam até a inevitável insensibilidade da medula.
Ignoram o tom e o dom de se enlaçarem numa mesma melodia e rodopiam em voltas inversas, onde os rostos se transfiguram em claves sem sol, numa longínqua, fria e solitária partitura.
Arrastam-se a tropeçarem no tempo, movidos numa dança sem sincronia, com as notas de um tango a contraírem-lhes os lábios que sangram de sede, silêncio e melancolia.

Há corpos cansados
moribundos de si,
que não dançam,
apenas balançam
agarrados.


21 de outubro de 2010

Pétalas em laço


Colho do sol
A cálida fonte que me entregas
De seiva a despoletar-me na pele
O pulsar rosáceo de vida
Ao longe
O cantar das águas em viagem
Semeando em mim
A sílaba que é voz e gesto
De uma força adormecida
Ergo-me do chão
Presa ao coração de um pássaro
E das pedras que me feriram as mãos
Soltam-se os detalhes
Pétalas em laço
Onde se aninha a alma que sou
E com ela te abraço


18 de outubro de 2010

Isto dá que pensar (7)


Para que não se viva
nem mais um segundo
sem sentido...


Mas que o sentido da vida
seja encontrado
em cada segundo!


13 de outubro de 2010

Dias sem norte


Hoje
Sou estátua de sal
Perdida de oceanos
Aos meus olhos
Apenas o lodo das marés
Repousa no sargaço
Que envelhece ao sol
E em terra minha
A alma é a quilha de uma caravela
Sem vento e sem vela
Dobrada sobre si
Em agonia

Hoje
Na ausência de um leme
Sou âncora embotada
Que rasga o tempo
A sangrar por dentro
E no meu sentir salino
Procuro um horizonte
Uma fonte ou gota de água
Que me refaça
Garça doce
Esvoaçante
Abraçando a dor
Mumificada


8 de outubro de 2010

A caminho do céu



Quando eu morrer

Planta o que eu fui

Na escarpa onde me vires caída

E em reminiscência

Eu irei viver em ti

Como uma árvore

A caminho do céu



5 de outubro de 2010

Quando a lua se parte




Aos olhos do Luís, ela era a miúda mais gira da sala de aula.
Achava-a parecida com a Anita dos livros da irmã e por isso, imaginava-a dentro das histórias que já ia lendo, vivendo com ela no íntimo do seu segredo, todas aquelas aventuras.
Nunca foram companheiros de carteira, embora ele o tivesse tentado várias vezes, mas Maria tinha uma amiga especial, a Zé, com quem ia e regressava da escola, lado a lado e era também lado a lado, que ambas partilhavam os primeiros passos nas aprendizagens das letras e dos números.
Estavam na terceira classe e nesse ano, ele tinha conseguido ficar sentado logo atrás dela. Passara assim a ser mais fácil chamar-lhe a atenção por qualquer pretexto. Não importava o motivo, desde que ela se virasse para trás e o olhasse e lhe falasse e… sim, era isso o que mais ansiava, lhe sorrisse.
Maria achava-lhe graça e sentia desde há muito, aquela preferência do amigo por ela. Sabia, embora não conseguisse explicar, que não era por acaso que ele lhe oferecia quase sempre, metade do seu pão com marmelada, à hora do recreio ou, na falta deste, apenas a sua presença para brincar.
Naquele ano, e devido às constantes solicitações dele, Maria tornara-se um pouco irrequieta e com frequência, lá estava ela virada para trás a conversar.
Dona Ema, a professora por quem todos tinham uma admiração particular, já tinha dado conta daquela distracção sistemática e de quando em vez, advertia, ora um ora outro, procurando recuperar a atenção dos seus alunos e corrigir-lhes o comportamento menos adequado.
A obediência era imediata e reconhecendo sem qualquer contestação, a falta cometida, balbuciavam um envergonhado; “ Desculpe, Senhora professora”, e os olhos pousavam timidamente no caderno, ao mesmo tempo que alinhavam a postura e a compostura.
Mas houve um dia, daqueles raros dias em que parecia que a tempestade entrava dentro da sala e tudo ficava cinzento e triste. Luís tinha acabado de a chamar, ela rodou o rosto para ele e com o seu maior sorriso, perguntou baixinho - Que queres? – Sem qualquer aviso, Maria ouviu o que parecia um trovão com o seu nome. Voltou-se imediatamente para a frente e, assustada, ousando olhar para a sua querida professora, quase gelou quando não lhe encontrou no rosto o olhar maternal de que ela tanto gostava. Nenhum traço de doçura, nenhum sinal de tolerância. Em vez disso, ouviu-a gritar outra vez – Já aqui ao pé de mim, Maria!-
Levantou-se. A tremelicar, cumpriu a ordem e, pela primeira vez, sentiu um frio estranho nas mãos e uma vontade quase irresistível de fugir.
Na secretária da Dona Ema, aparecera como que por vontade maléfica de uma qualquer fada má, uma régua de pinho, novinha e a estrear. Maria percebeu os movimentos da professora e, quando esta lhe pediu a mão, ofereceu-a sem contestar, com a palma virada para o tecto. Nela caíram impiedosas e sonantes três reguadas e quando pensava que se iria embora, a outra mão lhe foi pedida e também essa deu, para receber igual tratamento.
- Agora senta-te e livra-te de eu te ver voltada para trás, outra vez! – Maria foi, com as mãos fechadas de dor e injustiça. Antes de se sentar, olhou para o Luís e achou que ele tinha encolhido com o medo. Sentou-se por fim e agarrou os ferros frios das costas da cadeira, para lhe aliviar o doloroso formigueiro nas mãos. Nos olhos, dançavam-lhe traiçoeiras as lágrimas e por isso, pediu com toda a força ao Menino Jesus que não as deixasse cair, em troca, ela nunca mais se viraria para trás. Mas o Menino, mesmo sendo seu amigo, sabia que isso era algo que ela não podia prometer e sendo assim, deixou que ela chorasse em silêncio e a bata branca se molhasse de tristeza, vergonha e humilhação.
Nas horas seguintes, o silêncio permaneceu sentado entre todas as crianças que faziam cópias e contas, conforme pedira a professora.
Luís só conseguia ouvir o som da régua a cair nas mãos da Maria.
Maria não tirou os olhos dos livros e cadernos e o seu coração era uma lua partida em pedacinhos, e até a Dona Ema ficara em silêncio na sua secretária.
Quando todos se preparavam para ir embora, a professora aproximou-se dela, colocou-lhe uma mão no ombro e pôs à sua frente aquele pedaço de madeira de pinho, novinho mas já estreado.
Gostava que pintasses a teu gosto Maria, que achas? – Não achava nada, mas abanou a cabeça aceitando a tarefa.
Naquele dia, Maria aprendeu entre muitas outras coisas, que há dores que não se partilham como o pão com marmelada no recreio, que há poucas coisas verdadeiramente incondicionais, que há muitas formas de pedir perdão e que a injustiça jamais se esquece.
Naquele dia, escreveu-se na vida dos protagonistas desta história, uma história que não leriam em livro nenhum, mas que iriam recordar para sempre, como uma das mais importantes das suas vidas.