5 de outubro de 2010

Quando a lua se parte




Aos olhos do Luís, ela era a miúda mais gira da sala de aula.
Achava-a parecida com a Anita dos livros da irmã e por isso, imaginava-a dentro das histórias que já ia lendo, vivendo com ela no íntimo do seu segredo, todas aquelas aventuras.
Nunca foram companheiros de carteira, embora ele o tivesse tentado várias vezes, mas Maria tinha uma amiga especial, a Zé, com quem ia e regressava da escola, lado a lado e era também lado a lado, que ambas partilhavam os primeiros passos nas aprendizagens das letras e dos números.
Estavam na terceira classe e nesse ano, ele tinha conseguido ficar sentado logo atrás dela. Passara assim a ser mais fácil chamar-lhe a atenção por qualquer pretexto. Não importava o motivo, desde que ela se virasse para trás e o olhasse e lhe falasse e… sim, era isso o que mais ansiava, lhe sorrisse.
Maria achava-lhe graça e sentia desde há muito, aquela preferência do amigo por ela. Sabia, embora não conseguisse explicar, que não era por acaso que ele lhe oferecia quase sempre, metade do seu pão com marmelada, à hora do recreio ou, na falta deste, apenas a sua presença para brincar.
Naquele ano, e devido às constantes solicitações dele, Maria tornara-se um pouco irrequieta e com frequência, lá estava ela virada para trás a conversar.
Dona Ema, a professora por quem todos tinham uma admiração particular, já tinha dado conta daquela distracção sistemática e de quando em vez, advertia, ora um ora outro, procurando recuperar a atenção dos seus alunos e corrigir-lhes o comportamento menos adequado.
A obediência era imediata e reconhecendo sem qualquer contestação, a falta cometida, balbuciavam um envergonhado; “ Desculpe, Senhora professora”, e os olhos pousavam timidamente no caderno, ao mesmo tempo que alinhavam a postura e a compostura.
Mas houve um dia, daqueles raros dias em que parecia que a tempestade entrava dentro da sala e tudo ficava cinzento e triste. Luís tinha acabado de a chamar, ela rodou o rosto para ele e com o seu maior sorriso, perguntou baixinho - Que queres? – Sem qualquer aviso, Maria ouviu o que parecia um trovão com o seu nome. Voltou-se imediatamente para a frente e, assustada, ousando olhar para a sua querida professora, quase gelou quando não lhe encontrou no rosto o olhar maternal de que ela tanto gostava. Nenhum traço de doçura, nenhum sinal de tolerância. Em vez disso, ouviu-a gritar outra vez – Já aqui ao pé de mim, Maria!-
Levantou-se. A tremelicar, cumpriu a ordem e, pela primeira vez, sentiu um frio estranho nas mãos e uma vontade quase irresistível de fugir.
Na secretária da Dona Ema, aparecera como que por vontade maléfica de uma qualquer fada má, uma régua de pinho, novinha e a estrear. Maria percebeu os movimentos da professora e, quando esta lhe pediu a mão, ofereceu-a sem contestar, com a palma virada para o tecto. Nela caíram impiedosas e sonantes três reguadas e quando pensava que se iria embora, a outra mão lhe foi pedida e também essa deu, para receber igual tratamento.
- Agora senta-te e livra-te de eu te ver voltada para trás, outra vez! – Maria foi, com as mãos fechadas de dor e injustiça. Antes de se sentar, olhou para o Luís e achou que ele tinha encolhido com o medo. Sentou-se por fim e agarrou os ferros frios das costas da cadeira, para lhe aliviar o doloroso formigueiro nas mãos. Nos olhos, dançavam-lhe traiçoeiras as lágrimas e por isso, pediu com toda a força ao Menino Jesus que não as deixasse cair, em troca, ela nunca mais se viraria para trás. Mas o Menino, mesmo sendo seu amigo, sabia que isso era algo que ela não podia prometer e sendo assim, deixou que ela chorasse em silêncio e a bata branca se molhasse de tristeza, vergonha e humilhação.
Nas horas seguintes, o silêncio permaneceu sentado entre todas as crianças que faziam cópias e contas, conforme pedira a professora.
Luís só conseguia ouvir o som da régua a cair nas mãos da Maria.
Maria não tirou os olhos dos livros e cadernos e o seu coração era uma lua partida em pedacinhos, e até a Dona Ema ficara em silêncio na sua secretária.
Quando todos se preparavam para ir embora, a professora aproximou-se dela, colocou-lhe uma mão no ombro e pôs à sua frente aquele pedaço de madeira de pinho, novinho mas já estreado.
Gostava que pintasses a teu gosto Maria, que achas? – Não achava nada, mas abanou a cabeça aceitando a tarefa.
Naquele dia, Maria aprendeu entre muitas outras coisas, que há dores que não se partilham como o pão com marmelada no recreio, que há poucas coisas verdadeiramente incondicionais, que há muitas formas de pedir perdão e que a injustiça jamais se esquece.
Naquele dia, escreveu-se na vida dos protagonistas desta história, uma história que não leriam em livro nenhum, mas que iriam recordar para sempre, como uma das mais importantes das suas vidas.

17 comentários:

Andy disse...

Que ternura Maria João!
Tão bom este bocadinho que estive aqui.
E se vive uma criança em todos nós... e quantas vezes a gritar por atenção e sem a ouvirmos!
Fez-me reviver tantas coisas enquanto te lia, emocionante...

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida
Voltei atrás no tempo ao ler o teu texto, muito bom.

Beijinhos com carinho
Sonhadora

Anónimo disse...

Oi....que maravilha...

Qtas coisas guardamos num baú...que fica esquecido...mas ao ler seu texto,me trouxe á lembrança coisas boas de uma época feliz.

bjos!

Zil

Carla Farinazzi disse...

Maria João,

Que coisa mais linda! Dá pra ver as dores, os sentimentos, os sustos, os medos, tudo escorrendo por entre suas linhas.

Aliás, adorei todo o blog.

Beijos

Carla

AC disse...

Uma história plena de ternura...
Autobiográfica?

Beijo :)

Lídia Borges disse...

Histórias (nossas)!...

De cada vez que ao chegar a uma escola, encontrava uma dessas, à espera, numa gaveta da secretária, indignava-me. Também eu não esquecera a humilhação e os formigueiros... E por isso, sempre repudiei os seus "préstimos"

Um beijo

Jaime Latino Ferreira disse...

MARIA JOÃO


Querida Amiga,

Naquele dia, a Maria aprendeu que há injustiças que jamais se esquecem, a professora Ema terá esquecido tudo e nunca mais aprendeu nada e o Luís, como terá ele lidado com uma situação que ele próprio, involuntariamente ou não, desencadeou?

Uma coisa é certa:

Maria, incondicional, aprendeu que o que não se esquece, de tão grande ser a dor, pode-se resolver ao ponto de, com o tempo, se conseguir vir a partilhar como o pão com marmelada no recreio ...!

E assim se cresce e nos tornamos mais fortes, mais fortes do que a própria dor!

Um beijinho


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 5 de Outubro de 2010

manuela baptista disse...

ai Maria

eu também nunca esqueceria
que se os olhares de amigo
merecem chicotadas

aqueles que detêm o poder
deveriam apenas saber
que a violência não se apaga
com uma pintura
mal amada

Maria João

vem esta história de vida do tempo das Anitas e todos temos uma para contar, não tão bem é claro...

e a mim

as saudades que me deram, de partilhar um pão com marmelada!

um beijo

manuela

A.S. disse...

Maria João,

Os teus textos, deliciosamente escritos, despertam todas as emoções, fazem vibrar todos os sentidos, e levam-nos a vivências que ainda hoje nos empolgam!

Abraço!
AL

Dulce AC disse...

olá Maria João.

Quanta ternura ao voltarmos à Escola...maravilhosos pedaços de vida..mesmo e com as injustiças que tenhamos vivido
a verdade é que houve momentos bons, momentos de cumplicidade tão genuínos, porque então erámos crianças...
e são estes momentos que sentimos no sermos hoje também esse tempo de vida de muita ternura

foi mesmo muito bom ter voltado hoje à Escola Maria João...mesmo lembrando uma ou outra injustiça, porque foram de algum modo uma importante aprendizagem...!??

Num abracinho amigo muitos beijinhos:)

Dulce

Mariazita disse...

Querida amiga
São "pequenos detalhes" como este que, por vezes, deixam marcas para a vida toda. Pelo menos... não se esquecem.
Penso que o que a marcou, sobretudo, foi a sensação de injustiça, já que a Maria não estava fazendo nada que merecesse castigo tão severo.
É também de realçar o gesto da professora no final da aula: uma forma, mais ou menos encoberta, de pedir desculpa.
Muitas vezes, porque nós mesmos não estamos nos melhores dias, agimos impulsivamente e somos injustos. É isso que devemos evitar, agir "de cabeça quente".
Gostei muito do teu texto.
Beijinhos

Sol no Coração disse...

Maria João,

muito bonito o teu texto e a melodia que escolheste!

(eu é que agradeço o que aqui me dás);0)

Beijinho amigo*

Mar Arável disse...

Tantos instantes de vida

ternos mas em carne viva

Excelente

Bj

rosa-branca disse...

Adorei a sua história, mas fez-me voltar atrás no tempo. Eu, levei com uma cana da india na cabeça e só parou quando viu sangue. Levei pontos e tive que dizer ao enfermeiro que caí no recreio. Ainda bem que os tempos e as pessoas mudaram. Beijo com carinho

Por toda minha Vida disse...

Muito ler histórias que nos remete a infância, ao ludico onde se pode sonhar sem medo das espiações. Adoreiiiii.

Beijo e tenha um fim de semana repleto de paz, inspiração e com esta criança que todos carregamos dentro de nós.

Renata

Virgínia do Carmo disse...

Um relato lindo e enternecedor sobre as dores do crescimento... E se há coisa neste mundo que me enternece mesmo, são as lágrimas das crianças...

Um terno beijinho!

Sofá Amarelo disse...

Mas agora esta história irá fazer parte de um Livro, sim um Livro com letra grande... o livro que tu vais escrever com pedacinhos de memórias e histórias reais de um tempo em que se aprendia a crescer...

OBRIGADO!!!!