23 de fevereiro de 2011

Ser bago de trigo maduro


Não sei quando parto.

Há tanto que sou já
da tua luz,
o débil rasto
de uma enorme e alva claridade…

E se sigo ainda neste corpo
que é apenas matéria presente
da alma que vagueia
como um rio
fluido, calmo e transparente
é porque insisto ser,
bago de trigo maduro
orgulho da tua seara,
até que parta
e leve
tudo o que restar de mim
preso nas mãos,
para escrever o teu nome
por onde voarem os meus olhos.


17 de fevereiro de 2011

Perto do chão



Na surpresa de um relâmpago, viu-se a deitar fora os punhos de renda. Cravou as unhas na terra, lamentou todas as ervas daninhas e estendeu rendidas as palavras que há uma eternidade se atropelavam na boca.

Chorou.
A alma nunca é um espaço vazio e a dor é uma teia que se enleia, à volta de uma lágrima muda, tantas vezes a vida inteira.

Tão perto do chão quanto do peito trazia a vida, sentiu o colo da terra a apontar-lhe o olhar na direcção do voo das águias e percebeu que, dentro de si, grande era tudo o que não escondia em lugar nenhum.



14 de fevereiro de 2011

Hoje canta o poeta...








VINICIUS DE MORAES





Soneto do amor total

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei-de morrer de amar mais do que pude.


... na sua própria voz.



9 de fevereiro de 2011

Flor do Cardo



Se a noite cair em mim
E me fizer rendida à terra,
Inesperadamente
Eu serei de novo
Flor do cardo
A beber da saudade dos teus olhos
A indizível serenidade
Do amor eterno.



3 de fevereiro de 2011

Erosão dos afectos



Desfazem-se, pedras,
na fricção lenta dos dias,
umas nas outras
até serem pó,
erosão dos afectos
despojados
de calor e de chama.
São almas em queda,
sofridas e sós,
partículas de cinza
iludidas e cegas
presas aos nós
de quem já não ama.
As vozes,
outrora mel escorrido dos lábios
são agora o rio infecto,
cuspido,
da alma a lamber
o melodrama
do nada que valha a pena
ser vivido.



1 de fevereiro de 2011

Imperfeição



Aceitar a imperfeição de alguém, é compreender a nossa própria condição, e o quanto todos somos incrivelmente parecidos, embora julguemos que não.