27 de fevereiro de 2010

Sinfonia da ciência (1)



"Existe poesia de verdade no mundo real:

A ciência é a poesia da realidade"

Richard Dawking


"A história dos humanos é a história das ideias

Que lançam luz em cantos escuros"

Jill Tarter




(Espreitem os meus Mimos&Selos, encontrarão lá, um pouco mais sobre mim.)

23 de fevereiro de 2010

Gratidão




Nasci no tempo errado
Brotada da raiz certa
Nasci de um sonho desfeito
Contrafeito
De uma alma vazia, deserta
Nasci da flor, na dor
Amor de mágoa vestido
Força de um ventre arado
Que sem nunca me ter sonhado
Muito embora em tempo errado
Me fez viver e crescer
Grata por ter nascido

19 de fevereiro de 2010

Coisas boas


O dia começava cedo, bem cedo. Ainda o sol se espreguiçava da dormência da noite, já Adélia revolvia a vida por dentro e por fora num frenesim de força e vontade que contagiava tudo e todos.
Era um tempo difícil. Trabalhava longe, em casa das Senhoras ricas, às vezes levava também a filha pela mão e percorria ruas e vielas como quem passa de um mundo para o outro. Para trás já tinha ficado a janta pronta, as camas feitas, a roupa estendida e outra de molho em sabonária para ser lavada à noitinha.
Naquele passo certo e corrido, Maria, a menina, era levada quase a reboque.
- Porque não vamos de camioneta mãe? - Perguntava ela, sentindo ao fim de poucos metros o cansaço nas pernas franzinas.
Adélia às vezes sentia-se angustiada por sujeitar a filha àquele esforço, mas o que podia fazer? Não conseguia esconder-lhe a realidade, embora sonhasse com um futuro melhor e além do mais, era preciso ensinar Maria a enfrentar qualquer adversidade sem grandes lamúrias e lamentações.
Para irmos de camioneta gastamos quatro escudos por dia e é preciso poupar filha! Vais ver que chegamos num instante e depois vais ter todo o dia para descansar.
Os quatro anos de Maria, faziam com que não pensasse noutra verdade para além daquela que a mãe lhe dizia, agarrava-se a ela com a mesma força com que segurava a sua mão e juntas atravessavam a vida.
De todas, a mais bonita era a casa da D. Mimi. Ficava num 8º andar de um edifício tão alto que quase arranhava o céu. Tudo brilhava naquele luxuoso apartamento; os móveis de madeira exótica, o chão encerado e lustroso com carpetes bonitas, cortinados e reposteiros de tecidos nobres e cores sóbrias, pratas e porcelanas dispostas numa decoração requintada. Na cozinha, espaçosa e arejada, os tachos e panelas luziam pendurados e pairava no ar um aroma doce que se misturava depois com o cheirinho do café que Adélia fazia para os Senhores, mal chegava. Quando as meninas se levantavam, a mesa da sala já estava majestosamente pronta para o pequeno almoço. A Senhora já tinha dado as ordens para a refeição seguinte que deveria ser servida à uma hora em ponto, isto depois de Adélia se desfazer em agradecimentos e desculpas por ter tido a permissão, mais uma vez, de levar a filha consigo, assegurando que ela não perturbaria nem os seus afazeres e muito menos a vivência dos donos da casa.
Maria interiorizava com atenção todas as conversas, jeitos e gestos, sentada a um canto da cozinha, num banco de madeira pintada. Nervosamente, ou porque a imponente figura da D. Mimi a intimidasse, ou porque assumia a postura formal e servil da mãe, ela esticava a saia de xadrez pregueada para que lhe cobrisse os joelhos, tal qual lhe recomendava sempre o pai.
Depois era o reboliço. Era a dona da casa que tocava na sala o sininho, dando sinal para que Adélia comparecesse sem demoras. Era o Senhor General, que Maria apenas conhecia pelo som austero da voz, que dizia: “ Tenha modos Nônô!” ou “ Fifi, a menina ainda não lavou os dentes?”. Era a menina Nônô, a mais pequenina, que vinha à cozinha pedir à Adélia que lavasse o vestido da boneca ou lhe fizesse o totó e olhava curiosa para Maria, dizendo-lhe simplesmente “ Olá”.
Ao fim de algum tempo, a calma e o silêncio iam regressando ao ritmo da porta da casa que se abria e fechava até todos terem saído.
Ficavam depois só as duas, mãe e filha, naquele que era para Maria um palácio e para Adélia uma casa de muito trabalho. Depois de saborearem um delicioso café, feito com as borras já coadas do café anterior, Adélia começava a labuta; limpava, arrumava, lavava, esfregava, polia, estendia, passava e cozinhava com a mestria do saber fazer que dez dos seus vinte anos de vida, lhe haviam ensinado enquanto servia em casa de Senhores.
Maria, sempre de volta da mãe, aprendia com ela os gestos mágicos que transformam as casas em portos seguros, asseados e confortáveis.
Só havia um sítio onde ela se perdia como criança; o quarto das meninas. Tudo era tão lindo! A colcha rosa fofinha que cobria a cama pintada de cor branco-pérola . O abajur do candeeiro que era afinal o guarda-sol da boneca que agarrada a ele, pendia do tecto. A caixinha de música com a bailarina em pontas que ela fazia rodar dando-lhe corda, atrevidamente, assim que a mãe se distraía. E as bonecas, tantas bonecas. Grandes e pequenas, como ela nunca vira senão ali. Adélia deixava-a sempre mexer nelas, tocar-lhe nos cabelos, ajeitar-lhes os vestidos. Sabia que existia uma infância roubada no olhar da filha e que aquele era um dos poucos momentos que permitia o seu reencontro. Apesar de saber que Maria tinha todo o cuidado do mundo, repetia sempre o mesmo aviso, com a firmeza das coisas inquestionáveis:
- Volta depois a pôr a boneca no sítio e não estragues nada!
Voltavam depois à cozinha e era hora de preparar o almoço. Pouco depois regressavam todos e também o reboliço e o som do sininho, com a Adélia a colocar o avental branco bordado para se apresentar prontamente à chamada. Ah! E no banquinho de madeira, lá ficava novamente a Maria sentada, à espera que se fizesse novamente silêncio.
Almoçavam na cozinha o delicioso repasto das sobras da refeição dos Senhores que eram devolvidas nas travessas, às quais se juntava por vezes um pouco mais, que de tanta fartura, havia ficado no tacho.
À hora da sesta, Adélia estendia uma saca de serapilheira limpinha no chão da marquise. Maria adormecia ainda a sentir o beijo e a carícia da mãe, a ouvir o tilintar dos pratos e copos que ela lavava e a pensar na manhã, cheia de coisas boas que tinha vivido.



( Decido reeditar este texto que aqui publiquei em Julho de 2008, apenas porque ele me continua a fazer sentir... coisas boas !)

14 de fevereiro de 2010

Valsa de aconchegos



Se no serenar da noite me deixares voar
Para lá da dor que entendes ser só minha
Deixa-me, meu amor, chorar sozinha
Acolhe-me em teus braços, ao regressar



Se de tempestades abrigares desvelos
E voares comigo no rasto das andorinhas
Nas tardes pardas que antes eram só minhas
Prenderei as lágrimas por entre os dedos




Mas se num voo perdido nos encontrarmos
Como o sol encontra a lua, em plena alvorada
Entregarei meu corpo ao teu, sem dizer nada
No momento exacto em que cruzarmos
O compasso de uma valsa de aconchegos




Fts. da autoria do meu colega e amigo Felisberto Magalhães que gentilmente autorizou a publicação neste espaço.

10 de fevereiro de 2010

Isto dá que pensar (4)


Encontra-se perante uma criança que tem no rosto a mão de um adulto "desenhada".
Provavelmente, a mão que acarinha e afaga o mesmo rosto dorido.

O que faz?



Não sabe? Tem que pensar?


Pense antecipadamente sobre o assunto, se ainda lhe dá que pensar. Porque no momento certo, a criança vai precisar que decida....

Sem hesitar!


3 de fevereiro de 2010

Abandono



Calam-se os sinos replicados, calam
Porque bradar já não sabem de cansados
Mudos são os ecos já finados
E tristes são os olhos que não falam

Param os passos esgotados, param
Adormecem inertes na beira do arado
Sangram a seiva do trilho semeado
E gélidos ficam os gestos quando calam

Na profunda alienação dos sentidos
Fica no tacto a angústia da ausência
A recusa do estar só em permanência
A textura dos silêncios desmedidos

Entrega-se à lua a serena sonolência
Com os olhos tristes que não falam
Com os gestos que há muito se calaram
No eco mudo dos sinos em dolência

E se o sol nascer na sombra dos alentos
Escondido por entre raios deprimidos
Deixai ficar na noite os passos feridos
E na morte o abandono dos tormentos