28 de abril de 2010

Mala vazia



Fazia a mala, sabendo exactamente o que colocar lá dentro. Desenhara já aquele cenário, tantas e tantas vezes que agora, reunida a força para se erguer da inércia, sentia a repetição dos gestos. Partia.
Partia agora, sem adiamentos ou desculpas, partia antes que o medo a impedisse mais uma vez. Partia, como se da alma explodisse a última erupção, o último grito de uma guerra há tanto tempo perdida.
Já não pertencia àquele espaço. Nem a nenhum outro. Sabia-o, desde que se imaginara longe.
Acariciou com o olhar, as paredes que um dia havia colorido de sonhos e que agora, tal como ela, se esborratavam de solidão. Cada pequeno espaço daquela casa, tinha sinais seus, marcas das noites tecidas no fio das horas, enquanto esperava por Pedro. Olhou e despediu-se. Há muito tempo que já nada era seu, e pouco lhe importava isso. Vivera os últimos meses a pensar na partida e nada a faria deter. Nem a mala vazia. Muito menos, a mala vazia.
Pedro, fora o único homem que amara, o único pelo qual um dia, determinada, lutara para que a protegesse, para que a chamasse sua e a levasse para um lugar só deles. Era ainda quase menina e facilmente se deixou embalar pela doçura das palavras e pelas promessas que se entrelaçaram nos desejos, como coisas eternas. Sim, é verdade que às vezes, aquele jeito dele desligado a confundia, como se ela não fosse nada ou não lhe pertencesse. Ela, que lhe entregara tudo.
Apesar de tudo, deixara que a vida lhe soprasse o rumo. Amava-o, isso deveria bastar. Mas os dias ficaram cada vez mais longos, com as viagens de Pedro, também elas longas e as noites cada vez mais escuras e mortas, sem lua, renascendo em raras alvoradas de sol radioso de esperança, quando acordava, ouvindo o som ritmado e calmo do coração dele a bater.
Mas os sonhos, não vivem só de raras alvoradas e a tristeza, minou-lhe a vida como erva daninha. Nem o filho, que pariu sozinha, lhe trouxe alegria. Prematuro, franzino e doente, também ele não a quisera e morrera sem a deixar ser, verdadeiramente, mãe. Choraram juntos, ela e ele, mas dentro dela, nascia um rio de dor que sangrando, jamais haveria de secar.
Pedro culpou-a em silêncio, o silêncio que cimentou o muro frio, estático e intransponível, entre eles. O muro que a aprisionou e a manteve ali, ano após ano, a definhar sem vontade.
Por isso, não sabe o que aconteceu dentro dela, naquela manhã sombria, mais sombria ainda que todas as outras. Pensou que fosse alguma carta importante, quando o carteiro lhe entregou aquele envelope registado e remetido por uma tal Mariana Jardim. Abriu, não imaginando que ao fazê-lo, fechar-se-lhe-ia a própria vida.

Pedro
Lamento ter de te enviar esta carta, mas na ausência de notícias tuas, há quase seis meses, quero que saibas que és pai de uma menina que precisa que lhe dês o nome e aquilo com que se compra a comidinha.
Sem outro assunto
Mariana

Nunca mais deixara de pensar em partir. Mas o medo, tratara de lhe impedir sempre o gesto que decide o acto. Agora, os passos pareciam-lhe finalmente decididos e no entanto, a alma morria-lhe nos ombros.
Saiu de casa sem olhar para trás. Com a mala na mão, percorreu a rua, esperou o autocarro e entrou. “ Para a estação, por favor!” . Apeou-se mesmo em frente à entrada para a bilheteira. Comprou o bilhete para a viagem mais longa. Esperou.
Quando o comboio se aproximou, abeirou-se devagar e atirou-se à linha, antes que a carruagem pudesse, sequer, ter tempo de parar ou o medo a impedisse.
Já nada era seu, já nada a prendia e a mala que se abrira entretanto, estava completamente vazia.



22 de abril de 2010

Espera que volte




Espera que volte, meu amor ...

Porque és o meu silêncio, a minha calma
O véu que docemente me protege
Porque és o sol, astro maior
Ou estrela de brilho infinito
Porque és somente o meu grito
Porque és grande no meu lago
Sendo sede de universo
Pérola inscrita no meu verso
Ou concha de vida interdita
Porque és o meu alvoroço
Remoinho e ventania
Brisa de alento ou de alegria
Quietude no meu colo
Porque és meu solo
Espera que volte
Do tormento que me tem aprisionada
Voltarei a tempo
De adormecer a noite a teu lado
E embalar contigo a madrugada

17 de abril de 2010

No nada que sou



Despida por astros que gravitam em céu aberto
E me salvam das nuvens onde tropeço, incauta
Deslindo o enigma do tempo de ser tanto
No nada que sou
Ao sabor dos aromas do vento
Que trazem e levam a minha própria poeira
E nela me deito e me perco
Sem eira nem beira
Cega de sol e de assombro
Espalho as palavras na areia
Semeio-as nas pedras da rua
Solto enganos em céu aberto
E a alma se despe de mim
Deixando-me nua

14 de abril de 2010

Hoje canta o poeta...








MARIA GUINOT




Silêncio e tanta gente


Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro o amor em teu olhar
É uma pedra
É um grito
Que nasce em qualquer lugar
Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal aquilo que sou
Sou um grito
Ou sou uma pedra
De um lugar onde não estou
Às vezes sou o tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar
Às vezes sou também
Um sim alegre
Ou um triste não
E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão
Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro as palavras por dizer
É uma pedra
Ou é um grito
De um amor por acontecer
Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal p'ra onde vou
E esta pedra
E este grito
São a história d'aquilo que eu sou


... na própria voz


...porque há poemas e vozes e momentos que serão toda a vida coisas plenas!


9 de abril de 2010

Entre as ondas e os compassos


Entre o vai e vem das ondas que suavemente se espreguiçam na areia em tarde calma, revela-se em mim, como surgido do nada, um silêncio cristalino, limbo doce que há muito procurava.

Neste calmo e terno paraíso, onde me torno abrigo de borboleta, intervalo, nada me perturba e tudo é imensa melodia. A paz é um manto, tecido a fios de seda que bordaram nele o tempo, de cores soltas e vivazes de alegria. Traços de azul e branco, em fugazes olhares de terra e de verde maresia.

Aqui, sou tudo e nada, certeza revelada de quem já conhece todas as horas, todos os segundos. Breves, profundos.
Aqui entendo, porque tantas vezes, mas tantas, senti o corpo espartilhado, na mente indigente a vaguear.

Acredito que a imprevisibilidade não existe. Somos a verdade só nossa, recôndita, oculta, perdida… ou a nossa vontade, grande ou pequena, no querer ou não querer, que lavra o pensamento e desenha a vida com cor, sabor ou fragrância, ou então, com nada que valha a pena.

Sim, encontrei esse lugar, onde sossegam agora, todos os cansaços, todas as viagens, todas as horas ocas, todas as procuras e todos os medos.
Esses, os medos, lanço-os na ventania, como quem espanta o pó de um livro esquecido e meio lido, com um sopro morno de vida.
Esses, que suportei noite e dia, mais de noite até, porque sendo ela fria, me acautelei da geada, num outro universo, feito de prosa e verso, sonho e melancolia.
Aí, fui e sei que sou, guerreira sem temores, senhora de Avalon, um leme, uma concha, cordão de conta sumida, um simples lampião, um terço ou um berço ou qualquer coisa esquecida.

Hoje e agora, no abraço forte e quente deste sol que me aninha, envolvente, a carícia chega do mar em sinfonia.
Tacteio-lhe a partitura e o voo rasante de todos os pássaros, e entre dois compassos espraiados, de rios e mares e vagas de danças plenas, silencio-me, no suave embalo de uma barca ou caravela, desenhada na viela de uma escrita, em que as palavras são maiúsculas de afectos e de vida, pintadas em letras pequenas.


E nascem-me ondas nos dedos, em arrepios, frios … sonhos e segredos!


6 de abril de 2010

Singular modo de amar





No contorno fino dos teus lábios
Adivinho-te em palavras
Protegidas de outros verbos
Nuas, frias, lassas
À espera que das minhas, nasçam
Os milagres que te confortam.
Mas ouves leves cicios apenas,
Da alma que um dia cantou ao vento
Em fogo lento
E hoje é gélida ave sem asas
Sem penas
Presa à inevitabilidade do tempo.
Recuo pois, nas premissas
Nas certezas que me lastimam
E concluem o que não posso dar-te.
Beijo-te apenas
Sigilando no abismo do silêncio
Este meu singular modo de amar-te.


2 de abril de 2010

Confissão

Confesso...


Que no pranto, na chaga
Na dor que me habita
Sou cruz magoada
De carvalho esculpida
Sou prece ou renúncia
De amor imperfeito
Sou culpa que grita
Sou ferida no peito
De mãe aflita

Confesso...



A todos os meus leitores e amigos, desejo uma Feliz Páscoa