31 de março de 2010

O medo na palma da mão





Na palma da minha mão
Rodam as ondas do mar
Como preces de quem fica à deriva
Rezando regressos
Na palma da minha mão
Voam bilros orando, meu amor
No sal das carícias presas nos dedos
Contas, murmúrios, lamentos
Que entrelaço em rendas de rodopiar
Na náusea de perder-te
Na tempestade dos medos
E se a espuma dos dias te leva
E me deixa sem redes, perdida?
Que faço às rendas, meu amor?
Que faço à vida?



Ft: retirada da net (Monumento às rendilheiras - Vila do Conde)

25 de março de 2010

Luar da vida




No mais recôndito lugar da alma
Adormece a noite, tão cansada
De ventos soprados à toa
Na proa de um corpo que é vaga
Vaga de um rio ou de um mar
Nascente solitária e errante
Que a lua desnuda, brilhante
Amando-a assim, devagar
Esculpido o sonho sereno
Em seixos e beijos e margens
Inventa a noite, as viagens
Na íris parda, momento
Em que o olhar e o sofrimento
Transformam a vida em luar



Foto de Felisberto Magalhães

21 de março de 2010

Hoje canta o poeta...




FERNANDO PESSOA




O Infante


Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
e viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!



... na voz de Dulce Pontes


19 de março de 2010

Isto dá que pensar (5)



O dia está a terminar.
A esta hora, quantas crianças adormeceram já, com um desenho, uma prenda ou simplesmente um abraço pendurado nos sonhos, vencidos pelo cansaço de esperarem pelo pai.

15 de março de 2010

Um segundo teu...



É do tempo, o plácido momento
De sonhar num ano, um só dia
O dia em que o canto será manto
A sombra que se esvazia
Imaginar que chegas então
Amarfanhado de saudade
Porque um segundo teu nos meus braços
É minha sorte, vestida de eternidade




**

11 de março de 2010

Cantiga de amar


Amo.te luz brilhante, pássaro esvoaçante

Beijo solto à minha volta.




Amo.te.

O amor é apenas o milagre manifesto

Que prendo na cauda de um cometa

Desenhando com ele o universo

No verso

Da angústia contida de um poeta.





Ft: Felisberto Magalhães

8 de março de 2010

No feminino






Todas as mulheres têm dentro de si,
uma força inesgotável que nem sempre conhecem.




A mesma com que a natureza se veste,
para receber o sol, a chuva ou o nevoeiro, todas as manhãs.







2 de março de 2010

O olhar dos tristes



Há uma névoa nua, no olhar dos tristes
A sombra da sorte que lhes foi roubada
Vêem a vida desfeita, no meio da rua
A angústia de afinal, não terem nada

Soltam ao vento rezas e lamentos
Em passos lentos
Despidos no vazio das pedras e da lama
Que os chama
Ajoelham-se em luto, na terra que geme
Que treme
Rogando ao céu a trégua anunciada

Do caos, nasce então a ordem que os anima
Rasgando a vontade, sobrevivente
Haste que navega, ribeira acima
Como um sopro banhado em lava quente

E nos rios de mar lavam a dor
A alma quebrada em mil pedaços
Cobrem a memória da névoa que passou
Acendendo na vela, a luz que se apagou
E erguem-se na força dos seus braços