22 de outubro de 2012





Levo os olhos até ao fundo do mar
volto já
vou à procura do céu 
que existia na minha boca.



" Girl in the sea" - Denis Nunez Rodriguez

19 de outubro de 2012

Cara a cara com a maldade





Colocas-te acima do céu e, por isso, estás tão longe do mundo que não tens nenhum rosto onde te vejas, onde percebas o quanto estás só e te perdeste de dignidade e esperança.
Vem, não fujas nem te escondas atrás do sol, as nuvens são muitas e há um momento em que tudo escurece porque o brilho é efémero. Crava as tuas mãos aqui, na terra, e verás que também é dor e sangue o que trazes nos dedos. É aqui que tudo faz sentido, se te olhares frente a frente com outra gente e te deres conta que tens um coração inacabado, e o tempo é um espaço demasiado escasso para o preencheres de maldade.


14 de outubro de 2012

Lugares quietos




Tão lentos são os gestos
tomados de Outono.

O corpo adormece devagar
rendido ao peso espesso das nuvens
sobre as pálpebras quase fechadas.

Nos ramos das árvores
a nudez tem um segredo
onde te espelhas
onde nada acrescentas
porque tudo se escreve
no ciclo do tempo.

Pegas em duas gotas de chuva
e nelas pousas a alma
e a sombra da tua natureza.

Morres ou adormeces
pouco te importa.

Há um caminho certo
por onde vais devagar
até ao âmago da terra

O lugar quieto
onde nascem as montanhas.




Imagem:  Robert and Shana ParkeHarrison- Gray Dawn (2006)  


11 de outubro de 2012

Ponto a ponto se escreve um conto




Um desafio é um desafio, uma porta aberta que nos convida. Foi assim que aceitei o repto vindo da Lídia Borges do Searas de Versos, e colaboro nesta história escrita a “vários teclados”. O texto, que dá corpo ao desafio " Acrescenta-se um ponto", conta já com várias participações e as regras são as seguintes:


1 - O texto, constituído por vinte parágrafos, terá início no blogue "O Sabor da Palavra" (http://osabordapalavra.blogspot.com), segundo o seu autor Gonçalo Cardoso. 
2 - Cada bloguista terá direito a um parágrafo do texto com o máximo de cinco linhas. Não é taxativo, tanto pode ser mais ou menos, mas sem exageros. 
3 - Após a realização do parágrafo respectivo, cada bloguista terá que selecionar outro bloguista que cumpra a continuidade do texto, segundo as regras mencionadas. 
4 - Cada bloguista terá o limite máximo de três dias para realização do parágrafo, estando sujeito a desclassificação da rubrica e seleção de novo bloguista por parte do seu autor. 
5 - Cada bloguista assinará o seu nome e respectivo blogue na lista dos participantes.
6 - O último participante ou autor do vigésimo parágrafo, finalizará o texto e partilhará com o autor do blogue "O Sabor da Palavra" para a sua divulgação no blogue inicial.
7 - Sejam criativos.

Lista de Participantes:

1 - Gonçalo Cardoso (O Sabor da Palavra)
2 - Buxexinhas (Pedacinhos de mim...) 
3 - Karochinha (O Meu Eu) 
4 - A Minha Essência (Roupa Prática) 
5 - Olívia Palito (Olívia Palito no País das Maravilhas) 
6 - L'Enfant Terrible (L'Enfant Terrible Lx) 
7 - Utena (Os meus idealismos)
8 - Alexandra Martinho (Ouso Escrever) 
9 - AC ( nadadecoisanenhuma) 
10 - Poppy (Apontamentos de Luz) 
11 - Briseis (do meu pedestal) 
12 - Teté (Quiproquó) 
13 - Vitor (PreDatado)
14 - Rogério Pereira (Conversa Avinagrada)
15 – Lídia Borges (Searas de Versos ) 
16 - Maria João Martins ( Pequenos Detalhes )
17 - 
18 - 
19 - 
20 - 


E começa assim: 

 "Já tinha dobrado as duas da manhã. Estava a sair da emissão de rádio, incomodado com um ouvinte que alegava a minha falta de isenção jornalística. Segundo ele, apenas dava voz aos ouvintes do sexo feminino e os temas escolhidos revelavam uma tremenda homofobia. Estapafúrdio, dizia para mim! Mas para o exterior resolvi o problema com a introdução de uma música de intervenção social. E assim fechei o programa. Peguei na mala, desci as escadas em direcção ao parque subterrâneo e ao chegar junto do carro encontrei um segredo envenenado..." 

 “No seu vestido vermelho delineado na pele, ela olhava-me intensamente recostada no capô do meu carro, como um lince que espera a sua presa. Por momentos o meu coração parou de bater. ‘Voltou…’, pensei angustiantemente. Fantasmas do passado e segredos escondidos no recanto mais negro do meu ser… Renascidos da minha cinza. Em passos lentos, dirigi-me a ela. As palavras silenciosas do seu olhar disseram-me para onde ela me levaria. Entrámos no carro seguindo para o local temido…”

 "...por ambos. Aquela falésia onde, alguns anos antes, a tragédia se abatera sobre as suas vidas alterou os seus futuros para sempre. E todos os anos, no mesmo dia, encontravam-se antes do amanhecer, naquela pedaço de rocha que se erguia sobre o mar, numa esperança vã de expiarem os seus pecados mais profundos. Chegados ao local, saíram do carro e mais uma vez, as suas mãos encontraram-se e uniram-se, os seus corpos aproximaram-se e ela disse-lhe:"

 "... Com a voz tremida, sussurrada, gélida, com a postura hirta e consciente do momento, Amanda começa a debitar desenfreadamente como tudo aconteceu, naquela fatídica noite... ... "Não tive culpa! Não tive! Acredita em mim, por favor! Foi um acidente. Foi ele que escorregou da falésia, ele!" - Sedutora mas ao mesmo tempo frágil, ela sabia exactamente como emaranhar um homem na sua teia. Sabia exactamente a palavra certa a ser usada, o gesto proveniente, o olhar mais assertivo para a ocasião. Manhosa, laça-o num envolvente abraço onde o choro compulsivo é o senhor do momento. Entre soluços mas, com uma voz doce, repete incessantemente, "não fui eu! Não fui eu!" - Com o rosto apoiado no peito de Edmundo, via-se claramente o sorriso dissimulado que fazia. Ele, estava completamente rendido à fragilidade dela mas, ao contrário do que ela pensava, que o tinha nas suas mãos, Edmundo, também tinha algo a dizer..."

 "... acerca daquela fatídica noite. Edmundo fixou o olhar na falésia e ficou em silêncio por alguns segundos, enquanto os braços de Amanda o envolviam. De repente, ficou tudo absolutamente claro na cabeça de Edmundo, as peças do puzzle mental começavam a encaixar-se na perfeição. Lembrou-se da conversa off record que tivera com o inspector da polícia acerca do relatório da autópsia de Fred. Segundo o mesmo relatório, Fred havia ingerido uma dose substancial de whisky, confirmando assim o álibi de Amanda, de que Fred se desequilibrara e caíra daquela falésia. Porém, fez-se luz e um pormenor fulcral escapara a ambos: ao inspector da polícia e a Amanda, mas não a Edmundo..."

 "...isto porque Fred não bebia whisky, sofria de doença celíaca, de modo que tudo o que contivesse glúten, o que incluía bebidas feitas de malte, não lhe passavam pela garganta. Por outro lado a revelação Fred fizera a Edmundo um dia antes da tragédia era de todo desconcertante, tanto mais que de dizia respeito aos três, sendo que conteúdo da mesma tivera desde então um profundo impacto em Edmundo, ao ponto de o mesmo perder parte da sua imparcialidade jornalística. Ainda assim, envolto no choro soluçado de Amanda, Edmundo era incapaz de proferir uma palavra, de partilhar com ela o que pensava porque havia mais um elemento em jogo, uma dúvida perene que o levava a sentir-se tal como o mar revolto e sem definição que vislumbrava no horizonte..."

 “Não querendo mas ao mesmo tempo sem conseguir parar a maré das lembranças chegou-lhe à memória aquela noite que hoje lhe dava o conhecimento do facto de Fred não beber whisky. Fred confessou-lhe num ousado momento de coragem que se sentia atraído por Edmundo e que isso o deixava sem saber como agir pois nunca tinha sentido isso por homem nenhum já que sempre fora um mulherengo por natureza! A convivência dos dois, muito por culpa de Amanda, o lamber das feridas causadas por esta mulher de escrúpulos nulos tinha feito com que os sentimentos florescessem em dois homens que mesmo nada indicando que assim fosse os levou a sentir o que para ambos deveria ser tabu. Edmundo voltou a realidade com um soluço mais audível de Amanda e quando à olhava no profundo dos seus olhos verdes deu-se conta…”

 "...deu-se conta do quanto aquela mulher já havia sofrido. Fred horas antes de falecer havia contado a Edmundo que Amanda aos 20 anos se havia submetido a uma cirurgia de retribuição sexual. Sim, Amanda fora um menino em outros tempos, mas hoje era aquilo a que Fred e Edmundo chamavam de tentação. Edmundo olhava-a e um misto de sentimentos lhe assolavam a mente, perdera alguém que lhe era muito próximo, um amigo, mas também, um silencioso admirador. E ali, diante de seus olhos estava a mulher indefesa e esbelta que soluçava e por quem ele era estupidamente apaixonado, mas que carregava tão pesado segredo. Segredo esse que toda a sociedade condenava e condena. Edmundo perturbado necessita voltar, ir ao encontro do seu pedaço de chão para meditar e montar todo aquele puzzle confuso. Suplicou-lhe - "Amanda, necessito ir, vamos?". Amanda para ele olhou, com olhar fugaz, e disse..."

 "...És um homem cruel senão me aceitas como sou. E se assim for sem dúvida que não me mereces.Sou especial, sou única e estou disponível para te amar, com tudo o que tenho para te oferecer, mas jamais partilharia a minha vida ou o meu corpo, com quem olhasse para mim com desprezo ou nojo. Sendo assim cuida-te, olha para ti, observa-te com atenção e vais reparar em todos os teus defeitos... por agora vou apenas embrulhar-me no teu casaco sentir o teu cheiro e o teu calor que são presença nele e esperar que tu abras os olhos e possas ver para além do físico, do estereotipo e do preconceito a mulher que hoje eu sou...estou aqui, estarei sempre aqui para ti... de braços abertos...anda, decide-te não tenho o tempo todo..."

 "... Mas na cabeça de Edmundo cada vez mais as dúvidas e as desconfianças se instalaram. Havia demasiadas incongruências em torno daquela noite e um relatório conivente com o que Amanda lhe dizia mas contrário ao que conhecia de Fred, este jamais poderia ter bebido Whisky naquela noite. Não estavam em causa os desejos que nutria por aquela mulher, não se colocava em questão as mudanças de sexo, o que lhe assolapava as ideias era tão somente o que teria sido capaz de fazer aquela mulher de escrúpulos nulos, de vermelho vestida se soubesse do que acontecera entre eles, não foi capaz de lhe dizer mais nada. Levou-a a casa e naquele momento só uma coisa lhe ocorria, tinha de estar com o inspector responsável pela investigação..."

 "O encontro perturbador, aliado ao adiantado da hora, tinha um efeito nefasto sobre a sua lucidez. Conduzia como um autómato, a cabeça longe, muito longe da estrada por onde os olhos passavam. Era de noite, ainda. Para não enlouquecer durante as longas horas que antecediam a manhã e a sua oportunidade de falar com o inspector, foi para casa, tomou um banho tão quente quanto conseguiu tolerar e, ainda com o cabelo a pingar água e a pele a fumegar vapor, sentou-se a escrever a sua versão dos factos, a sua memória dos acontecimentos, caso algo lhe acontecesse... Escreveu tudo, longamente, e concluiu com a revelação do facto mais bem guardado:"

 "Fred confessara-lhe o ciúme que sentia de Amanda! Sem nunca lhe ter revelado, adivinhara a paixão e o desejo que transpareciam nos seus olhos quando ela aparecia em cena, naquele misto de sedução e de fragilidade que tanto o cativavam. Parou de escrever. E se...? Não, não era possível, que o amigo chegasse tão longe... Ele andava perturbado - os credores avolumavam-se à sua porta! - mas suicidar-se?!? Deixando no ar a suspeita de Amanda ser a culpada pela sua morte?!? Mas porquê aquelas revelações súbitas e inesperadas, poucas horas antes daquela fatídica noite? Era um plano macabro demais para ser verdade..."

 "Levantou-se, abriu as janelas de par em par e, debruçado sobre o parapeito, olhou as estrelas. Voltou para dentro apenas o tempo suficiente para apagar a luz. Não havia luar e assim o céu ficava mais bonito. Acendeu um cigarro, deu-lhe duas baforadas e voltou a contemplar as estrelas. Com Amanda e Fred na cabeça, ia falando consigo próprio. Aos poucos foi-se descontraindo no fumo do cigarro, na tentativa de ainda se lembrar do nome das constelações. Aquela é a Ursa Menor, aquela a Cassiopeia, aquela o Cão Maior. Raios! Porque não se lembrou antes disso? Fez um telefonema para Irina. Ela costumava ficar com o cão de Fred quando este se ausentava."

"A visita a casa de Irina foi demorada e difícil para ambos. A conversa  parecia não ter nexo, com Irina a tentar explicar o inexplicável de aquela carta de Fred só passados três anos aparecer. Irina estendera-lha com mãos nervosas e foi com mãos nervosas que a Armando a recebera. Despediram-se com o luto nos olhos e sem uma palavra. Na rua e, depois, pelo caminho leu e releu o texto do sobrescrito cuja letra lhe era familiar. Em casa, levou um tempo tremendo até vencer o medo e  abrir a carta que lhe era dirigida: Meu querido amigo, quando leres estas linhas já terei partido. Não vos julgo nem culpo. E a haver culpados culpo a indignidade que me foi dada por uma vida que já não merece ser vivida. Não há uma só situação a explicar este meu acto, que muitos considerarão tresloucado. Foi tudo. Foi a minha incapacidade de vos amar. Foi a minha confusa sexualidade. Foram as dívidas acumuladas. Foi o desemprego e a incapacidade de encontrar alternativas. Foi a minha marginalização no partido. Foi tudo isso e ainda..."


" Fez uma pausa na leitura para macerar uma lágrima teimosa e acalmar o lamento que se contorcia no seu coração, agora que a tese do suicídio lhe parecia ganhar consistência. 
 Pobre Fred! – pensava - Como fora possível ter chegado a tal estado de desespero sem que ele, seu amigo íntimo, se tivesse apercebido? O mundo está inquinado de indiferença. O mundo, o mundo... Mas que mundo? As pessoas são o mundo, o mundo é as pessoas e, cada uma delas, um fragmento fraco de um todo forte, mas incompreensivelmente ignorado.
Edmundo deixou cair os olhos húmidos sobre a folha de papel que lhe ficara esquecida nas mãos e continuou a ler:
      Foi tudo isso e ainda alguma coisa inominável e paralisante. Algo que não me permite lutar contra o medo. O medo da solidão, o medo de ver, de vislumbrar mais uma manhã sem esperança nem projectos…
 O longo e estridente “trimmmm” da campainha que subitamente encheu a casa, fê-lo estremecer. Pousou a carta na estante, entre os livros e dirigiu-se para a porta sem disfarçar um gesto de desagrado. "


Ao abrir a porta não conseguiu disfarçar o espanto. “ O Senhor aqui, Inspector Madureira?” - O inspector reparou no semblante cansado e transtornado daquele homem que lhe franqueava a entrada. “ Bom dia, Edmundo! Não se assuste, estou aqui no seguimento da investigação da morte de Fred Campos, ou melhor, do homicídio do seu amigo. Temos razões para acreditar que o senhor, neste momento, corre risco de vida.” – Edmundo sentiu-se perdido no meio de tantas dúvidas e revelações. Tudo lhe parecia cada vez mais confuso e surreal. “ Não, não, inspector! Fred suicidou-se. Tenho aqui a carta que o comprova” – e dito isto, foi buscar a carta que tinha pousado na estante e que não acabara de ler.  Madureira agarrou nela com curiosidade e leu-a demoradamente. “ Onde estava esta carta?” – perguntou. Edmundo explicou-lhe como Irina a tinha encontrado, só agora, deixada por Fred dentro de um livro que ela lhe havia emprestado. “ Está a ver, Fred queria suicidar-se...” “ Pois queria..."- anuiu o inspector. "... mas temo que isso não tenha chegado a acontecer, meu amigo. Há detalhes da investigação que você desconhece e esta carta pode explicar muita coisa. Venha comigo até à judiciária, vou precisar de si !"


Entrego agora o texto à Filoxera do  “Escrito a quente” que contribuirá para os passos finais deste intrincado caso. Confesso que estou muito curiosa.!