16 de março de 2012

Talvez me arrume...



Acordo para lá das horas, quando o dia já se viveu pela metade.
Uma espécie de caos instala-se em mim, invade-me as têmporas, cega-me os olhos, e rouba-me a harmonia em que sempre me protejo, como num casulo vazio de dúvidas.
Não sei o que me preocupa e, no entanto, tenho a mente ocupada de palavras, como se uma rebelião se anunciasse dentro do meu cérebro. Tropeço em mim e, na desordem, procuro organizar este amontoado de pensamentos que me interrogam, desarrumando as coisas certas. Olho-me ao espelho e não gosto de me ver aqui. Olho o meu corpo e não entendo, o que faço eu, regressada em atraso, a este espaço que me é cubículo de palavras. Queria não o ter habitado. Queria não ter voltado. Queria ser livre para me poder estender sobre as nuvens e deixar tombar, na terra ainda humedecida pelo choro da noite, este peso que me rouba o movimento espontâneo de mim mesma, sobre a superfície corpórea das coisas, onde me penso. Onde sou. Onde penso que sou.
Mas a terra já secou, na metade do dia que deixei morrer de inutilidade.
Escrevo.
Escolho ver-me no desenho das letras. O sol já vai alto, e talvez seja mais fácil descobrir na forma das minhas sombras, a mesquinhez da minha existência, e render-me assim, à grandeza do verbo que vive da eternidade do tempo em que se soletra, nos olhos de alguém. Escrevendo, talvez encontre utilidade nas mãos agarradas a estes braços que já se saturaram de mim, e solte dos dedos, uma espécie de ânsia de voar, aprisionada por esta minha natureza solitária. Escrevendo, talvez me arrume junto do entendimento das coisas inexplicáveis e, talvez, quem sabe, alguém me veja por dentro.



10 comentários:

Lídia Borges disse...

Viver para escrever ou escrever para não viver?
A vida e a arte, o eterno conflito,a inevitável simbiose...

Um beijo

Rogério G.V. Pereira disse...

Vejo-te por dentro, sim. E não queria. Não era forçoso, nem necessário. Não era, absolutamente necessário que te expusesses assim. Apaga isto que escreveste e volta a escrever. Nada sairá igual, vais ver. Escreve não a pensar no teu desnudar mas no meu sentir. Verás que te agradará mais a utilidade das belas palavras que sabes desenhar, esgrimir. Nunca confesses ser pequena, se és enorme (mesmo num pequeno momento que te consome)

Jaime Latino Ferreira disse...

MARIA JOÃO


Querida Amiga,

Escrevendo, descompostos, nos compomos!

Um beijinho


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 17 de Março de 2012

andré maia disse...

«Escolho ver-me no desenho das letras», é bem capaz de - quando não se descuram os pormenores - projectar no infinito os sonhos e as memórias que, por vezes, o tempo teima em manter prisioneiros.

Depende, se calhar, da superfície que as letras escolheram. Água, nuvens ou espelhos? Talvez seja preferível principiar pelas sílabas, antes de decifrar as palavras.

...Como quem olha o horizonte através das persianas!

Rosa Carioca disse...

Sempre que escrevemos, crescemos, buscamos força!!!

AC disse...

Maria João,
Mesmo quando pensamos que começamos a entender, a vida nunca deixa de ser um constante arrumar/desarrumar. A nós resta-nos, numa tarefa sisífica,tentar colocar as peças no sítio certo.

Beijo :)

Bergilde disse...

Se escrevemos escrevemos para alguém e na maioria das vezes somos nós mesmos esse necessário leitor...
A maioria dos grandes artistas poetas e pensadores teve seu momento de crise e foi exatamente nesse momento ou momentos que conseguiu transmitir o melhor de si à humanidade.
Abraço carinhoso,

antonio Gallobar disse...

Olá querida amiga

Conheço esse sentimento que nos trespassa por vezes em nosso espirito, quantas vezes me apetece dizer basta, mas sei que não basta, que é urgente dizer que estamos cá e que é util que façamos ouvir a nossa voz e não esqueço também as palavras sabias do poeta Carlos Drummond de Andrade:

"No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra."

E por isso eu digo também...
todos temos uma pedra no meio do caminho, ela está lá, nós sabemos que está lá... desânimo nem pensar é preciso contornar ao invez de baixar os braços...

Beijinho

Nilson Barcelli disse...

Espero que seja ficção.
Mas o texto é brilhante.
Beijinhos, querida João.

Branca disse...

E tu sabes Maria João como há tanta gente que te vê por dentro, nessa desarrumação generosa. Ninguém é estático no ser, a não ser que tenha uma pedra no lugar do coração.

Parabéns por este momento intimista, tão belo, pela partilha generosa e corajosa.

Beijinhos
Brnca