
Sentou-se à beira do mar. Estava exausto, pronto a desfazer-se da pele que trazia e, no entanto, não estava certo de estar pronto para receber a seguinte. Na incógnita, viu-se inseguro.
Tentava lembrar-se dela, do exacto momento em que rasgara a lembrança como uma fotografia e guardara os pequenos pedaços, algures dentro de si.
Tinha sido mais fácil esquecer. Ao longo dos anos tinha aprendido, que há feridas que doem menos se nos esquecermos que existem. Mas, sabia agora também, que essas, as esquecidas, nunca saram.
Não, não se lembrava do rosto dela. Apenas alguns traços numa linha descontínua. Sabia-lhe apenas das mãos, do desenho das veias que as alimentavam, o formato das unhas nos dedos e o carinho que delas nascia; imenso, pleno e generoso, a envolvê-lo em todos os momentos da sua vida. Todos, até ao dia em que o recusou.
Não, também já não se lembrava das palavras. Tantas que ouvira e dissera, doces e agrestes. Nem do olhar que, sem nunca ter percebido bem porquê, evitara.

Mas reconheceria o seu cheiro, num jardim de jasmins e madressilvas, no final do Inverno e saberia seguir a sua voz, como o dedilhar de uma harpa, no meio de uma multidão.
Tudo lhe parecia agora presente, incrustado na alma. Uma alma diferente que se revelava dentro dele, sem aviso.
- Vou ser pai !!
O grito lançado ao mar, à sua sabedoria imensa e o eco a repetir-se dentro do coração que pulava. O olhar vagueava ao ritmo das ondas, num vai e vem que parecendo igual, jamais o seria. E abriam-se as janelas de par em par , no desenho do sorriso feito riso que pendurava ao peito.
E de novo a angustia da ausência dela, ou da sua ausência na vida dela, ou o doloroso esquecimento dos dois.
Imaginou o filho a crescer, como ele havia também crescido. Imaginou-se a protegê-lo, como ela também o havia protegido. Pensou no vento que transforma as marés, pensou no tempo, pensou nela e uma lágrima escorregou, incauta, face abaixo.
Como posso ser um bom pai se não fui um bom filho? Como posso alegrar-me pelo futuro se me entristeço pelo passado? - E a pele a despegar-se dele, a largá-lo.
Dos olhos nascia então um mar que ao outro se acrescentava e na areia, desfaziam-se noites e dias de gélida e teimosa solidão.
No silêncio seu, despiu-se da roupa e, desnudado de tudo, entrou mar adentro com as palavras não ditas a queimarem-lhe a boca. Sorveu a espuma e o sal, trocando a vergonha, o medo e o orgulho.
O sol caía a pique, quando se ergueu da profunda transparência e, por fim, caminhando, desenhou o regresso nas pegadas que foi deixando.
Com os pés ainda nus, mas já firmes na rocha quente, olhou para trás e observou o ziguezague dos seus passos. Naquele momento, percebeu que à porta que agora se abria, escancarada, a franquear-lhe o caminho, a mãe esperava, há já uma eternidade, pelo seu abraço.
E foi para aí que seguiu, sem mais demoras, para lá chegar com o raiar da aurora e no colo dela, no amor dos seus braços, fazer as pazes com a vida, fazendo as pazes com ela.

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