
Era sempre o dia mais esperado, aquele que trazia o sol para dentro de casa, embora a inevitável noite voltasse, quase de seguida. Mas o que importava mesmo, era aquele momento único em que todas as inquietações desapareciam por breves minutos, e crescia a ilusão de ser e ter um pouco mais.
O Patrão chamara-a e entregara-lhe o envelope, dizendo: “Continuamos a contar contigo”.
Quatrocentos e dez euros e vinte cêntimos. Apertou o sobrescrito nas mãos e pensou em todos os dias que o relógio, obstinada máquina do tempo, lhe ditava o imperativo maior de levantar o corpo da cama morna, onde dormia só.
Pensou nas horas em que as costas lhe reclamavam repouso e ela, ignorando-as, continuava na apanha da batata, ou na monda nas estufas.
Pensou na solidão e nas pernas cansadas.
Pensou na sorte que tinha, de não ter sido despedida e sem um ai ou qualquer outra queixa, prendeu tudo lá dentro, no lugar mais fundo de si, em memória de António que o Senhor o tivesse em descanso. Ele haveria de se orgulhar dela, como lhe prometera quando o fora a enterrar. Por via de todo o amor que lhe dera, nunca mais haveria de ter outro homem e faria dos filhos, gente nobre e valente.
Pensou no sorriso dos dois meninos a saírem de casa pela manhã, de mochila às costas e barriguinha cheia de cevada e pão com doce de tomate, feito por si.
Quatrocentos euros tinham que chegar, que os outros dez, mais os vinte cêntimos, já estavam destinados para pagar a água.
A caminho de casa, passou pela mercearia do bairro, comprou o pão de centeio e pediu ao Sr. Manuel que lhe trocasse o ordenado em notas de vinte. Era assim mais fácil dividir o pouco e menor a sensação do nada.
Em casa, com o sol ainda a aquecer-lhe a alma, pegou nos envelopes de papel já moído. No da renda da casa, juntou cem aos duzentos e cinquenta euros que já lá estavam, da sua pensão de viúva. Contou mais três notas de vinte e colocou-as no seguinte, para a luz e gás. Voltou a pensar no sorriso dos filhos e pôs de parte quarenta euros, para os sapatos novos do João e para o blusão do Pedro. Iria à feira, talvez desse para mais alguma coisa. O resto, guardou-o no terceiro envelope junto com o abono, para comprar a sobrevivência. Para eles, claro, e para os coelhos e galinhas que medravam na capoeira e mais para o adubo das alfaces e para os tomateiros que haviam ficado encomendados.
Se calhar, não chegava...
A noite caía novamente, fria, a ensombrar-lhe o olhar e a vida. Ainda deixou cair duas lágrimas, lambeu-lhes o sal e secou-as com a manga do casaco. Renunciaria à tristeza com todas as forças, tal qual sua mãe, noutros tempos. Arrumou tudo na gaveta da mesinha de cabeceira e saiu para a horta.
Enquanto apanhava as laranjas, e as couves para a sopa da janta, pensou na alegria dos filhos que em breve chegariam a casa e se abraçariam a ela e decidiu falar no dia seguinte com a Alzira, sua amiga de infância. Ela haveria de lhe arranjar umas escadas para lavar ao domingo, lá nos prédios novos onde trabalhava.
Por Deus, haveria de chegar!