17 de maio de 2009

A gentileza de ver para além de olhar...


A cena passou-se num qualquer dia, a uma hora matinal, daquelas em que raramente existem lugares sentados disponíveis em qualquer meio de transporte público.

Clara apanhou o Metro religiosamente à mesma hora e como sempre, ficou de pé. Já estava habituada.

Tinha aprendido a gostar daquele equilíbrio instável, sentia-se suavemente embalada pela carruagem e era assim que durante os quarenta minutos que durava a sua viagem, se entretinha a observar aqueles que viajavam consigo.

Os rostos habituais, alguns mais cansados que no dia anterior e rostos diferentes, absortos nos seus próprios pensamentos e alheios ao que se passava em redor.

Pessoas tão diferentes, fisicamente tão juntas ali, por breves minutos, mantendo o anonimato das suas vidas. Que vidas? Que preocupações? Que sentimentos? Que pensamentos?

Pessoas tão distantes umas das outras!

As portas da carruagem abriram-se de par em par e entre mais de uma dezena de pessoas, entrou alguém com idade suficientemente avançada, para ser notada. Mas não foi.

Clara olhou à sua volta, para as pessoas que estavam sentadas. Os rostos continuavam lá, mas os olhares estavam ausentes, como que acometidos por uma espécie de transe matinal que lhes mantinha a sonolência nocturna.

A carruagem recomeçou a sua marcha e naquele solavanco, a idosa senhora agarrou-se ao braço de Clara, pedindo-lhe desculpa por tão atrevido, mas absolutamente necessário gesto, para se manter de pé. Clara sorriu-lhe e disse-lhe que não fazia mal, que podia continuar agarrada ao seu braço.

Algumas pessoas olharam para elas, como se romper o silêncio fosse como infringir uma qualquer lei , punível com o olhar. Mas rapidamente voltaram ao estado apático inicial.

Clara achou que era o momento, inspirou fundo e deixou que a indignação tomasse conta do discurso…

“ Alguém terá a gentileza de se levantar um pouquinho mais cedo do que o habitual e dar o seu lugar a esta senhora, que já utilizou as pernas durante mais anos que qualquer um de nós?”

Os rostos viraram-se todos em sincronia, para Clara e depois para a velhinha. Os olhares tinham aquela expressão de quem é tomado por surpresa com o entoar de um trovão.

Um senhor logo se levantou, como se o despertador tivesse acabado de tocar, e a velhinha agradeceu a gentileza e lá se sentou no seu lugar, não antes de ter apertado o braço a Clara. Um sinal, um obrigado.

E tudo voltou a ser como havia sido, dez minutos atrás, a uma hora matinal de um dia entre outros, igual.




14 comentários:

Mariazita disse...

Querida amiga
Este teu "apontamento" (óptimo) fez-me lemrar um verso de Eugénio de Andrade, que cito com frequência, porque cada vez é mais actual:
"Passamos pelas coisas sem as ver" - neste caso concreto mais grave ainda, dado tratar-se de uma pessoa, e não de uma coisa.
Muitas vezes atitudes que nos parecem puro egoismo não passam de uma indiferença doentia - ninguém quer saber de ninguém.
Claro que, no fundo, é uma forma de egoísmo (ou egocentrismo), que reflecte um sentimento que é generalizado, e vai alastrando de forma assustadora.
O que será do ser humano se a humanidade continuar a apenas olhar para o próprio umbigo???

Minha querida, que o teu domingo seja feliz e repousante.

Um beijinho com muito carinho
Mariazita

irineu xavier cotrim disse...

Assim é a vida. A vida de cada um

SILÊNCIO CULPADO disse...

Maria João

Um apontamento rico de vida num quotidiano monótono e indiferente.
Esta cena repete-se com a mudança de alguns personagens.
Neste caso houve um senhor que se levantou e deu o lugar à velhinha mas, frequentemente, mesmo quando interpelados por alguém que segue em pé, essas pessoas sonolentas e egocentradas quase sempre se mostram alheadas da voz que lhes diz que está ali alguém que precisa do lugar que disfrutam.
Pessoas que fingem não ver, que podemos esperar delas?


Abraço

Dr. Mento disse...

Histórias destas são bastante comuns nos transportes públicos. Se entra uma grávida, por exemplo, muitos são os que fingem dormir. Os lugares sentados tornam-se parcelas de território que cada um, qual monarca do seu estado, recusa ceder sem luta.

No fundo, a história que relatas mais não é do que um pedacinho do individualismo e do egoísmo que tomou conta de uma sociedade mecanizada.

José Quintela Soares disse...

Chama-se falta de educação, de civismo, de Cultura.
Muito comuns neste país de quase analfabetos letrados.
E haveria cenas degradantes a acrescentar: os "meninos" que colocam os delicados pés no banco em frente, os que escrevem a canivete...nos forros e bancos, os que fazem ginástica nas argolas, e ainda os que se esquecem de tomar banho antes de sair de casa....

Portugal.

R.Almeida disse...

Um texto maravilhoso e escrito de uma maneira tão pormenorizada que nos leva a viver uma viagem de metro nas horas de ponta.
Às vezes sinto uma solidão enorme nessas viagens em que estou rodeado de pessoas que parecem não existir.
Não sei mesmo se a Clara que fala no texto é a autora do mesmo, mas por incrivel que pareça e pelo pouco que ainda li no blog fiquei com a impressão que o é pois a escrita tantas vezes revela aquilo que não temos intenção de mostrar, mas que na realidade faz parte da nossa essência como seres humanos.
Beijos

JC disse...

Olá João!
As pessoas são pouco sensíveis`a quem as rodeia, é necessário que haja um alerta para que despertem e possa praticar aquele gesto que automáticamente o deviam ter feito mal a velhinha entrou.
A educação anda um pouco arredada, deste mundo e desta sociedade em que vivemos. Somos assim. Procuremos edcar diferente.
Beijinhos

A.S. disse...

Maria João,

Pequenos fragmentos da vida real, que fazem do nosso quotidiano um imenso palco de emoções, inquietação, numa sociedade que avança descontroladamente.
Vivemos demasia do depressa... falta-nos tempo para tantas coisas, que parecendo insignificantes, são essenciais...


BeijO"ss

lili laranjo disse...

Maria Jõao.
Há momentos da vida difíceis de suportar...
A doença é um dos pontos bem doridos...
Eu tenho tido uns dias dificeis mas Deus vai ajudar-nos a passar esta fase...
um beijo




SE…

Se...
Se...
Se...
Já viste...
Que a vida é mesmo isso?...
Sempre se vive a interrogar...
Se...
Se...
Se...
E vamos interrogando...
Vamos perguntando...
E vamos tendo sempre...
Esta preocupação...
Se...
Se...
Se...
E com tantos...
Ses...
Vamos continuar a dizer...
Se...
Se...
Se...


Lili LARANJO

vieira calado disse...

São cenas diárias,

mas é bom escrevê-las.

O seu texto está bem escrito.


Beijinhos

Oliver Pickwick disse...

Talvez não tão igual como os outros. Se estimulado, o umbigocentrismo reage. Neste caso, para uma boa ação.
Um beijo!

Valdemir Reis disse...

Amiga Maria João é sempre com grande alegria que visito este importante espaço. Honrado e feliz. Quero agradecer sua amizade, atenção e gentileza. Muito obrigado! Parabenizo você pela harmonia e qualidade deste trabalho. Grande tema, ótima escolha, excelente texto, relevante e de grande sensibilidade, muito bom mesmo, uma preciosidade, fantástico, gostei. Valeu ter passado aqui. “Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove. E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar. Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.” Cora Coralina. Encontrar-nos-emos sempre por aqui. Aguardo sua visita, passa lá! E volte sempre! Tenha um agradável e feliz fim de semana. Muita paz, brilho, proteção e sucesso. Tudo de bom, prosperidade... Fique com Deus. Forte e caloroso abraço.
Valdemir Reis

A.S. disse...

Maria João,

Neste final de um domingo cinzento, venho deixar-te os votos de uma boa semana!


BjO"ss

Mariazita disse...

Querida amiga
Venho trazer-te um abracinho de boa noite.
Estou impossibilitada de mandar emails; não sei porquê, tenho, desde manhã, 3 mensagens no Outlook para seguirem, e não arrancam! Mas continuam a entrar, e em grande quantidade :)))
Espero que amanhã a coisa melhore...

Um beijinho muito grande, com votos de uma noite acompanhada pelos anjos.
Mariazita