27 de fevereiro de 2014

O azul é céu todos os dias




Os dias não são sempre iguais. Dizes-me, embora não o sintas.
Dizes-me para saberes como se segura a tristeza com o cansaço, para a arrancares dos lábios antes que as palavras se azedem na tua boca sem céu. Dizes-me (eu sei) pensado que também eu preciso de acreditar nisso.
À tua volta, a terra é um fundo negro , cada vez mais negro, e a claridade de cada dia é coisa pequena. Tão pequena que mal a sentes; tens os olhos presos a uma escuridão sem candeia. Talvez por isso a tua pele tenha a cor pardacenta de uma folha de papel esquecida, amarrotada e inútil, sem nada que pareça ter valido a pena. Tudo nela escrito; porém, sem que entendas o significado das linhas, dos sulcos, dos poros, da transpiração inevitável da tua vida. Sem que percebas que te deixaste levar para a quase morte dentro desse vazio de terra negra, onde o verde dos prados se transformou em cinza, numa secura própria dos desertos da alma.
Dizes-me que não são iguais: os dias, e vejo-te moribundo à procura de uma árvore grande. Uma árvore com raízes e ramos e folhas, e os frutos abrigados nelas, à espera de amadurecer, sabedores da doçura do tempo.
Aperta nas mãos isso que dizes. Espreme cada palavra até lhe saberes o sentido, e o eco for inteiro na tua língua.
Ainda há árvores a crescer, sabias?! Não, não aí, nessa terra onde abandonaste o corpo para envelhecer, nessa ravina de má memória onde te lembras, não!
Mesmo à beira do abismo, neste lugar de pedra descarnada que nos fere e nos desnuda a todos, o sol ainda nos abraça; ainda beija o chão e aquece; ainda alegra o canto das aves; ainda faz brilhar no olhar a cor imutável do céu. É aqui, antes da queda,  que as árvores crescem, sem desespero, com as raízes presas às rochas. Às vezes, crescem curvadas pelo peso do vento, à noite. Mas crescem, dignas, enquanto tiverem seiva. Enquanto lhes rangerem os galhos, sabem do tronco que se eleva à procura do azul:  esse azul que persiste, no cimo de qualquer paisagem pintada em qualquer tela . O azul que é céu todos os dias, embora alguns sejam diferentes só porque têm nuvens.





5 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Belo texto
e a pretexto.

Sou árvore que já não cresce,
mas que resiste,
com ramos erguidos mas não em prece
firmes, em riste

reclamo,
em cada ramo...

Bergilde disse...

Refletindo com estas tuas palavras me percebo também muito 'árvore'. Tenha um bom prosseguimento de dia amiga poetisa e já desejando-te um ótimo final de semana !

Manuel Veiga disse...

"ainda há árvores que crescem"...

muito belo o texto.

gostei muito.

beijo

Graça Pires disse...

Obrigada, Maria João, pelas palavras deixadas no meu "Ortografia". Virei aqui outras vezes. Vou ter imenso gosto em lê-la.
Um beijo.

a noite (ser) disse...

Chego aos Pequenos Detalhes e parece-me ser tarde, mas depois leio e releio e a sede de ler mais diz-me que afinal é cedo e que afinal tenho toda(s) a(s)vida(s) à minha frente para te ler- ainda mais.

Beijo
Olívia Santos