Na cor doce e suave do toque, o seu cabelo era mel e havia um brilho amendoado nos seus olhos, onde pressenti esconderem-se as pontas soltas de doze outonos de solidão. Era uma menina e chorava.
“ Não devia ter nascido!”- disse-o como quem solta do peito o derradeiro sopro, contraindo-se na espera de um eco inverso. Mas foi um grito o que senti, um grito que se me colou sangue adentro, até à dor impossível nas minhas entranhas.
Abracei-a.
“ Princesa, não é culpa tua!”.
O olhar dela agarrou-se ao meu. Náufrago. Salvo do abismo eminente por falta de um colo, de um beijo, de um afago. Salvo da vertigem recente, no mergulho negro de uma jangada de comprimidos. Salvo da desistência, no vergar da tenra esperança. Salvo para tudo, quem sabe o quê…
Desejei levá-la comigo, para lhe perpetuar na alma a força dos rochedos.
Desejei ter na mão uma magia própria, capaz de tocar o coração desabitado dos pais dela e de todos os outros também. Corações desertos de memórias e perdidos de si . Lembrar-lhes que é preciso sentir-se amado e desejado, para se conseguir aceitar da vida o que nos açoita e nos rouba o sol, ás vezes. Dizer-lhes que nenhuma gaivota voa livre, no saber desesperado de terra ausente que a acolha e a aconchegue dos cansaços do vento e da espuma alvoraçada do mar.
Desejei....
Mas sei tão bem, que há dias em que o sonho é o traço possível no horizonte imperfeito e outros em que o pesadelo é uma equação insolúvel.
Abracei-a de novo. Procurei dentro da emoção apertada, as palavras certas. Palavras isentas de ocos sentidos e outras banalidades. Nada. Só o abraço e o silêncio, possuíam a lógica do gesto próprio para aquele momento. Na dor, ofereci-lhe o óbvio e nada mais.
“ És tão bonita, e é tão bom viver…”.
Apertou-me contra si e, com o rosto cansado apoiado no meu ombro, disse-me baixinho:
“ Eu não queria…, eu não quero morrer. Mas estou tão triste..”
…
Hoje, passados alguns dias, busco a serenidade impossível na utopia dos desejos. Sei que ela virá, porque outros olhos me esperam. Olhares brilhantes ou baços, com outras dores, à espera dos meus braços e das palavras que, tantas vezes, não encontro.
Na procura, cruzo-me com Fernando Pessoa e descubro na sua poesia, o abraço que preciso para chorar.
“ A miséria do meu ser “
A miséria do meu ser,
Do ser que tenho a viver,
Tornou-se uma coisa vista.
Sou nesta vida um qualquer.
Que roda fora da pista.
Ninguém conhece quem sou
Nem eu mesmo me conheço
E, se me conheço, esqueço,
Porque não vivo onde estou.
Rodo, e o meu rodar apresso.
É uma carreira invisível,
Salvo onde caio e sou visto,
Porque cair é sensível.
Pelo ruído imprevisto...
Sou assim. Mas isto é crível?
Fernando Pessoa
18 comentários:
há meninos
que têm histórias de vida maiores que a solidão
maiores que a tristeza de uma vida triste
maiores, tão maiores do que eles!
e depois Maria João?
"és tão bonita! Princesa"
e um abraço
é a resposta certa a todas as perguntas
banal
seria dizer: "faltaste à escola?" ou " os teus pais gostam muito de ti!"
talvez não gostem
mas, "um dia, vais viver feliz um dia!"
abre uma porta para o futuro
que é um lugar onde todas as crianças, mesmo as mais tristes, desejam um dia chegar!
eu sou assim
um beijo
Manuela
Devia ser proibido o sofrimento das crianças...
Minha querida
Um texto muito tocante...profundo como a solidão, gostei muito de o ler.
Beijinhos
Sonhadora
Descreves um mundo que não vem nos manuais, que não é tema de conversa nos cafés e nas esplanadas, muito menos na utopia dos dias e das vidas que muita gente leva... um tema que enjoa aqueles que só olham para o seu próprio umbigo e que não têm a coragem nem a sensibilidade de perceber que existe um outro mundo que parece distante mas que pode estar ali ao lado... que pode vir a ser também o mundo deles...
... porque nada nos garante que um dia não rodemos ... fora da pista!
e as crianças senhor
porque as abandonaste?
Dois belos textos
Maria João, muito tocante e reflexiva essa história - como tantas outras, infelizmente - narrada com o coração em chaga.
Obrigado por partilhá-la connosco e que... a tristeza da menina um dia vire alegria.
Um abraço
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. é também errante a alma que sendo essência ao peito em arco aberto se sente aquém por não poder ser além a.penas com um toque de dedos tarsos na ida .
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. ou partida adiada das metáforas felizes .
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. maria joão,,, bel.íssimo .
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. um beijo meu .
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. paulo .
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A história que nos contas, que presumo verdadeira, dada a tua profissão, é uma das muitas possíveis que a sociedade, tendencialmente egoista, vai fabricando quase sem dar por isso no dia a dia.
Mas a forma como contaste essa história foi excelente. Foi o teu coração que a escreveu...
E o poema que escolheste do Poeta, foi a cereja em cima do bolo neste magnífico post que publicaste.
Beijos, querida amiga.
Retalhos de vida, que a Maria João nos mostra com a entrega e sensibilidade de sempre.
Talvez não tivesse tido na mão uma magia própria, mas no coração teve-a.Apercebeu-se de que, por vezes, o choro tem que não se deixar ver. Domou a mágoa, susteve a dor,conteve a revolta e bateu forte para dizer: "Princesa, não é culpa tua!"
Palavras que aconchegaram outro coração que batia triste.
Um grande abraço
Amiga,
obrigada por nos tocar o coração, com as suas experiências, com a sua vida com seu amor ao próximo.Sabe, Quando escreves que desejava ter uma magia para reverter os que os pais, de coração deserto fizeram a ela...Penso que a alma humana é algo inesgotável... tanta beleza, tantos mistérios... que a cada dia nos deparamos com ações, sentimentos que muitas vezes nos alegram, nos revela a sua luz, a mão de Deus em nós... mas em outras vezes nos entristecemos também ao ver e sentir que essa mesma alma é capaz de se tornar... ora instrumento de amor, ora instrumento de dor.
Obrigada pela partilha ,
beijos no coração
PS: fico muito feliz em ter uma amiga e uma colega de profissão como vocÊ...conheces muito bem a essência do amar, do cuidar e do sentir, fatores importantíssimos que fazem no ser humano, no ato cuidar, toda a diferença...
Gisele
Maria João
Esqueço que leio de tão próximo da vida este texto se apresenta,,, e nada há a dizer quando só um abraço cabe no momento.
O meu abraço sincero.
L.B.
Maria João,
Emocionadíssima que li o seu texto, porque uma menina assim triste vive na mais profunda solidão e desamor.
Eu já ouvi uma menina falar assim e dói, dói o egoísmo e a atrocidade dos adultos, dói-nos o mundo todo no momento em que uma pessoa tão jovem perde o interesse pela vida, ainda que seja um só momento.
A dôr de alma de uma criança é a coisa mais monstruosa do mundo.
Durante muitos anos, na juventude, sempre frequentei em grupo ou sózinha internatos de crianças para aprendizagem e progressiva readaptação, na altura as escolas no interior eram poucas(agora também vão ser) e o ensino não era integrado para deficientes de diversa ordem, desde invisuais a surdos-mudos e também por vezes visitava enfermarias no Hospital de crianças Maria Pia no Porto, mais tarde tornei-me muito próxima das aldeias SOS e raramente vi crianças com esta dôr e este abandono, pelo contrário deram-ne verdaddeiras lições de vida e alegria, porque apesar de tudo eram amadas, mesmo que muitas vezes vindas de famílias complexas.
A falta de amor é a maior de todas as doenças...!
Deixo beijos e um abraço apertadinho e enorme para a menina dos olhos amendoados, se lho poder dar e dizer-lhe que "um dia vai ser muito feliz", como diz a Manuela. Foi assim que tornei uma menina feliz, sempre a prometer-lhe felicidade e muito amor, até ter chegado o seu dia de começar a ser realmente feliz! E depois é só acreditar, que tudo acontece mesmo...às vezes demora, mas acontece.
Beijos
Branca
As crianças geram especiais emoções, por si. Quando os seus gritos, por vezes mudos, outras não, encontram os ouvidos certos, concerteza nenhum indiferente, e nesse encontro se apresenta a sensibilidade apurada que, por exemplo, te caracteriza, surge assim, um texto que transpira isso tudo, mas especialmente a capacidade para nos arrepiar.
beijinhos.
Maria João,
Visitar este teu mundo é um puro fascinio!
Palavras, emoções, beleza, talento, e muito bom gosto!
Beijos e bom final de semana!
AL
Amiga minha
Crianças com 12 ou 13 anos têm uma sensibilidade enorme, e quando sofrem, sofrem intensamente.
Tu soubeste, no momento certo, dar-lhe exactamente o que lhe fazia falta - um abraço caloroso, carinho, mimo.
É o que importa, em momentos desses.
Banalidades... para quê? Isso estão elas (as crianças) fartas de ouvir.
Muito comovente a tua história, mas muito boita.
Uma noite feliz. Beijinhos
A tristeza de uma criança é de uma atrocidade indescritível... Todas as crianças deviam ser felizes...
O teu texto, João, é belíssimo e traz-me sal aos olhos, assim como o poema...
Beijinho grande!
Maria João. salvé!
Todos nós fomos/somos crianças. Cada um/a transporta consigo todos os registos akáshicos nos quais a alma se retracta desde sempre - entre o Ser e o Karma. E é por isso que desde logo, o corpo começa a dar "sinais" evolutivos...pelo que o sofrimento, é o que nos salta mais aos olhos; então sendo criança...piora um pouco o nosso estado. É na observância que também se chora ou alegra...
Muito sinceramente sinto sempre dor quando assisto a qualquer quadro igual ou semelhante e não importa a idade - penso até que as crianças consegue ir buscar forças que um/a idoso/a já não tem.
As Leis Universais são para todos aprendermos a seguir "viagem"!
Pena que a estrada seja ainda, tão dura de Caminhar!
Deixo um beijo e a comoção do momento
Deixo um abraço envolto em esperança no amanhã
Deixo uma rosa branca perfumada e uma vela acesa
Sempre...
Carinhosamente...
Mariz
Li e reli todos os textos, nem sei como comentar, muito embora não consiga evitar deixar umas frases simples que tentem expressar o meu agrado. Gosto imenso da forma como escreve e do bom gosto permanente em todo o espaço. Fiquei realmente emocionada. É concerteza uma mulher extraordinária. Parabéns.
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