27 de janeiro de 2012

Noites plangentes



Há noites que nunca mais amanheceram.
Noites em que todas as folhas caíram
Sem darmos conta.
Ficaram sós, os ramos
Entregues à agitação do vento
Com a memória a abraçar-lhes a alma.
Plangentes, essas noites
Vagueiam agora dentro de nós
Tão profundamente...,
Como seiva nas nossas veias
Embargadas de lágrimas,
Sem chão possível
Onde guardar
Todas as palavras
Que nunca foram ditas.




24 de janeiro de 2012

Grito de água



Tragam-me os barcos!

Que faço a esta sede de ser
mar a crescer-me dentro dos olhos
sem mastros que rasguem
a insónia da lua
sem barcos que descubram
outro céu
no enredo das algas?



(Imagem " In Search Of Sea " de Rob Gonsalves)

19 de janeiro de 2012

Etéreo



Entre este agora e o outro que não sei
a alma das palavras é o etéreo espaço onde me dissolvo,
uma aragem
leve e breve
que passa
tão silenciosamente
a humedecer-me os lábios de poemas.




Pintura - Ana Muñoz

15 de janeiro de 2012

Detalhes de poesia (Rosário Alves)


"Studying"  
Iman  Maleki - 1998















pastoreio reflexos na desordem do solo
como pergaminhos deitados por terra
em horas corridas ao abandono

almejo adivinhar a idade do mundo
na luz interposta pelos traços de hoje
rebusco nas pausas que se abeiram da sombra
uma identidade atemporal
onde todos passeamos cumplicidades
inscritas nas mãos que apertamos com fé

alguma cadência na rotação do sol
nos há-de marcar os compassos
de uma dança universal

não busco diferenças
não procuro distâncias
sigo o trilho da cor que adivinho ser marco
do mesmo medo em todos os olhos
com laivos de esperança a faiscar dos sorrisos

em todos os corpos a mesma espera
de um abraço placenta quente e inteiro
transversal à pele à carne e aos ossos
e à memória genética que precede a existência

e eu pastoreio reflexos
arrebanhando contrastes
num vasto improvável
puzzle mental
onde as sombras se encaixam
e a luz se unifica

porque no núcleo interno
das nossas potências
sabemos
que a natureza não sustenta enganos


"reflexos" de  Rosário Alves 

10 de janeiro de 2012

Redondo é o mundo...



Penosamente, percorreu aquele pedaço de espaço. Escassos metros entre a cadeira, onde há mais de uma hora esperava, e a porta que só agora se abria.
João Cordeiro, advogado de sucesso, recebeu-a com um rosto afável e sorridente. Dizia-lhe a experiência que essa era a melhor forma de preparar alguém para o que de desagradável, às vezes, tinha para dizer.
"Como está Margarida? Obrigado por ter vindo. Faça favor de entrar! "
Ela olhou-o dentro dos olhos, com aquele olhar com que se descobrem as coisas que não conseguem esconder-se por muito que se queira e percebeu assim, que os gestos largos e exagerados do causídico, apenas adiavam a revelação final de uma encenação ridícula sobre o amor.
Sentou-se de novo e avaliou a força que ainda lhe restava. Estava cansada, tão cansada….
Margarida era uma mulher ainda jovem, cuja estima por si própria há muito afogara dentro da decepção de não ser feliz. Casara por amor e desse amor lhe nasceram as filhas. Hoje, elas eram a única razão de todas as guerras por que ainda se determinava lutar. Razão única de estar ali.
Durante anos lutara contra a indiferença de Joaquim, a brusquidão azeda dos seus gestos, as palavras geladas em discussões sem sentido. Lutara contra a opressão das panelas que escondiam as histórias infelizes das gatas borralheiras. Lutara até ao limite, contra a distância dos corpos para além da consumação do vício e a dormência da alma que a tornara insensível ao abuso, à violência consentida do ato. Lutara contra o fim do sonho e a falta de esperança. Talvez por isso estivesse tão cansada.
Um dia, num final de noite, viu-se refletida na parede branca do teto e, vazia de amor, de desejo, de rancor ou de raiva, percebeu que já não sentia mais nada. Nessa manhã, Margarida decidiu que o seu casamento terminara. Ela achava que decidir sobre a sua vida era algo que ainda lhe restava, mas Joaquim jamais concordaria com isso. Ele era o macho, era ele, e só ele, quem escolhia e quem rejeitava. Haveria de nascer quem o abandonasse sem ter sofrido o bastante.
Foi isso que Joaquim decidiu, nessa mesma manhã de guerra anunciada; fazer Margarida sofrer o que ainda lhe faltava. E tudo fez para lhe enfraquecer a vontade e o ânimo, para a reduzir ao tamanho de insecto, esmagando-a depois com o poder e a fúria do desprezo que sentem os homens desprezados.
Quase conseguiu, quando ela aceitou ser a única culpada pelos anos falhados e por todas as infidelidades dele. Quando aceitou não ter sido a mulher e a amante que ele achava merecer. Quando aceitou não merecer.
Margarida aceitara a injúria, a perseguição, a ameaça. Aceitara até, a bofetada dada à porta de sua casa. Fizera-o, com o rosto erguido e as mãos a protegerem as meninas atrás de si.
Aceitar nem sempre é concordar.
Pensava assim para se manter firme. Tão firme, quanto o tremor das pernas o permitia. Mas nunca permitiu que ele lhe dissesse que não era mãe, que não era boa mãe, a melhor mãe para as suas meninas. Isso nunca aceitou. É que há mentiras, que nos esmagam para além do possível, e há verdades que nos fazem crescer as unhas como garras.
"Diga lá então, Dr. Cordeiro, o que quer o pai das minhas filhas, desta vez?"
O advogado pegou no sorriso e guardou-o dentro da gaveta de onde retirou um ar grave e sério, mais adequado ao que se seguia. Pegou nas folhas dactilografadas e deu-lhas a ler.
De paragrafo em paragrafo, Margarida leu com atenção todas as cláusulas daquele acordo e deteve-se naquele que dizia:
- As filhas; Leonor Soares Torres e Inês Soares Torres, ficarão à guarda da progenitora que deterá sobre elas o poder paternal. -
"Ele apenas lhe pede que abdique dos bens que lhe pertencem. Mas não precisa de concordar com isso, Margarida. Não é justo que assim seja e pode ainda lutar pelas suas coisas…. "
Ela olhou-o mais uma vez e viu, o quanto os olhos revelam o que a boca não diz.
"Só isso? As minhas coisas pelas minhas filhas? Coisa tão pouca…", a emoção rodeou-lhe o timbre da voz e ela não foi capaz de dizer mais nada.
João Cordeiro indicou-lhe então a última página, onde um traço à direita e outro à esquerda, esperavam que se firmassem neles as duas vontades. Margarida pegou na caneta , olhou para a ponta esférica de onde, em breve, sairia negra a tinta que escreveria o seu nome.
"Redondo é o mundo e não há nenhuma noite que não se tenha transformado num novo dia.", disse-o em voz alta mais para se ouvir do que para ser ouvida e assinou, desenhando calma e serenamente cada letra , como quem coloca, finalmente, a aquecer-se ao sol a própria sombra.



7 de janeiro de 2012

O pudor do meu nome



Há tanto se avezou de ti esse vício, de me desnudares com o olhar e, no entanto, nunca te importaste que morresse de frio enquanto deixavas a noite cair sobre os meus ombros cansados. Cansados da tua ausência.
A minha pele nunca foi para ti um canto aconchegante da tua casa. Eu fui apenas um abrigo na perdição de ti próprio.
Dei-me. Dei-te o pouco que fui no nada em que me tornei agora.
É por isso que hoje, [re]cubro o meu corpo com o pudor das palavras que ainda escrevem o meu nome. Com elas, hei de descobrir no peito o desenho de uma nova forma de amar.


2 de janeiro de 2012

Árvores de alma nua



Encantam-me as árvores no inverno,
essa paisagem bucólica de alma nua
por onde sigo descalça
ouvindo melhor
o silêncio dentro dos meus passos
e onde o frio me dói
como um eco
nesta tristeza que sinto
rasa
à flor da pele despida
de todas as palavras.