10 de junho de 2010

Não quero morrer sozinha!





Tinha o olhar doce, mas orvalhado de suplica.
“ Por favor senhor doutor, não me mande para casa…”

Estranhos desígnios estes que hoje a faziam recusar, o que tanto amara a vida inteira; a sua casa, o seu templo, trono de seu único reinado, paraíso onde sempre fora dona e senhora, talvez rainha soberana, quem sabe?
Gostava de tudo nos seus lugares. Tudo, porque tudo eram pequenos farrapos dela e, por isso, nada estava a mais porque tudo lhe fazia falta. Eram coisas velhas como ela, mas suas, muito suas! Que ninguém viesse sequer dizer-lhe para substituir os tapetes, que outrora tecera com trapos, por carpetes. Ou então, para guardar as suas rendas e bordados na arca. Estavam fora de moda? Que estivessem. Queria-os ali mesmo, em cima das cómodas e mesinhas de cabeceira a fazerem-na feliz. Há muito que dizia ao filho que os seus tarecos falavam com ela e lhe adivinhavam as memórias, as tristezas e as saudades. Ele não acreditava, parecia-lhe que às vezes até se ria do que ela dizia. Por certo, achava-a senil o maroto. Magano a mangar dela.
Ele era o seu menino, sempre fora. Mesmo casado e de vida feita lá por França, sempre o embalara no coração e era o cheiro dos caracóis macios e loiros o que ela sentia quando, de saudades, fechava os olhos a recordá-lo.
Mas isso fora até há cinco anos atrás, antes da vida dele andar em bolandas e se ter divorciado. Se ficara triste? Nem sabia bem definir. Ora, antes assim, já que o amor acabara e netos não havia! Mas no íntimo de si, como um segredo jamais revelado, habitava a felicidade maior de o ter de regresso à sua casa e aos seus cuidados, precisamente no dia em que ele festejava cinquenta anos.
Passara então a tê-lo por perto todos os dias… ou quase todos.
Gostava de lhe aprontar a refeição, de ficar à sua espera de mesa posta, tacho fumegante e a saliva a crescer-lhe na boca. Não, nunca comia sozinha, a não ser que ele tardasse sem a avisar. Nesse caso, comia a sua sopinha se a fome era muita, mas quase sempre não comia nada
Gostava de lhe tratar das camisas, engomá-las a preceito sem dobras ou vincos, que esses só nas calças, como pertencia. Deixava depois tudo pendurado em cabides, e nos seus devidos lugares. Não queria que nada lhe faltasse, nem que ele sentisse falta de nada.
Havia dias em que as pernas já se arrastavam para ir à mercearia, mas Rosinha, a filha do Joaquim, trazia-lhe às vezes as compras a casa, pois por poucas que fossem, pesavam sempre mais do que aquilo que conseguia suportar.
“ D. Hermínia, a senhora já não tem idade para estas coisas, o seu filho é que havia de tratar de si...” dizia-lhe  o merceeiro, amigo de muito ano.
Sabia-o. Sentia os oitenta e quatro anos pesarem-lhe cada vez mais no ânimo, mas enquanto o corpo pudesse e o Senhor lhe permitisse, seria ela a cuidar dele.
E cuidou, até há pouco mais de quinze dias atrás, em que o corpo deixou de puder.
Adoecera com uma pneumonia. Ficara acamada no hospital e, dia após dia, sentira fugir-lhe das pernas a força necessária para se manter de pé. Ao fim de uma semana, findo o tratamento e curada a doença, teve de voltar para casa. Não podia ficar mais tempo, havia que dar lugar a outros, quem sabe velhos, tal como ela.
O filho protestou. Que não podia tomar conta, que era complicado…
As soluções eram poucas, ela sabia-o. Mas o Centro de Saúde vigiaria, a Santa Casa da Misericórdia apoiaria, e o filho haveria de a mimar. Claro que a mimaria!E quanto não vale o mimo de um filho?
Voltava então para o seu canto, e isso era o mais importante.
Seria?
Nem imaginara na altura, o quanto estava errada. Soube-o em pouco tempo.

Era a terceira vez na última semana que o filho a trazia à urgência.
Primeiro, porque a achava pálida, depois, porque os intestinos estavam presos… 
Agora, ouvira-o dizer à enfermeira, sem pudores ou falsos equívocos: “ Desculpem, mas têm de ficar com ela. Não tenho tempo nem vida para isto. Negócios, sabe como é!?”
Pressentiu o fim naquele derradeiro segundo. A voz do seu menino que sempre achara doce, a  gelar-lhe  a alma, num frio que lhe paralisava o sangue no interior das frágeis veias. Sentiu finalmente o cansaço de viver e rendeu-se vazia a toda a solidão adiada.
Apertou a mão do médico com força e, com a lucidez a transbordar-lhe nos olhos, continuou;

“… não mande, p'la sua saúde, doutor! Eu não quero morrer sozinha!!”


13 comentários:

Mel de Carvalho disse...

Por estas e por outras, minha querida amiga, é que a Mel arrancou ontem com uma nova "missão sorriso" ...
parcas sejam as forças, e nada nesta vida me impedirá de o fazer...
porque a solidão e o abandono de tantos como o que aqui transborda, é muito, mas muito maior, (tão incompreensivelmente real) que a nebulosa que o nosso conformismo permite alcançar...

beijo, Joãozita.
Volto mais logo para reler.
Bem-hajas por teceres estes gestos.

Nilson Barcelli disse...

O teu texto é comovente e leva-nos a reflectir que filhos é que os pais têm andado a criar.
Sei que a atitude dos filhos perante a velhice dos pais não depende apenas da educação que tiveram, mas o que relatas é demasiado comum. Já assisti, até, a filhos reformados, sem terem mais que fazer do que comer, dormir e respirar, mostrarem-se relutantes em dar o apoio necessário aos pais.
Por tudo isto, florescem os lares, alguns deles apoiados pela segurança social. Só que, muitos deles, não têm qualidade mínima (técnica, etc.) para um apoio a um resto de vida digno dos idosos.
Excelente texto, querida amiga. Uma vez mais parabéns, pois tudo o que escreves é bom, seja prosa ou poesia.
Beijos.

vieira calado disse...

O último drama.

O maior!

Bjs

Anónimo disse...

Maria João, que escrito lindo e comovente. Apesar de triste, tem que ser escrito porque é a realidade de muitas famílias. Idosos e crianças merecem um carinho muito especial.
Um beijinho com muito carinho.
Manoel - Brasil.

Rosa Carioca disse...

Algumas pessoas já me disseram para "arranjar" um filho, a fim de ter alguém para cuidar de mim, na minha velhice. Meu Deus! Um filho não se arranja. E não é garantia de nada nesta vida.
Continuo a revoltar-me com estas situações tão reais. Como gostaria de ter "trabalho" a cuidar de minha mãe... Significava que ela estava viva e que poderia compensar todo o trabalho que teve comigo...

Mariazita disse...

Maria João, fiquei com um nó na garganta...
O teu texto é muito comovente, mas mais ainda por sabermos que, se não é real, retrata uma realidade comum e vulgar.
Não imaginas o desgosto que me sausa saber que um filho não quer tratar da Mãe que por ele daria a vida, se tal fosse preciso.
Revolta-me o estômago!
Mas casos assim devem ser "denunciados" para ver se as consciências despertam.

Bom fim de semana. Beijinhos

Lídia Borges disse...

Comovente!

Difícil será proferir muitas palavras, quando tudo se esgota numa só: Drama!

Um beijo

Sofá Amarelo disse...

Podia ser uma história de ficção, escrita por um grande escritor, daqueles que sabem traduzir em palavras os sentimentos e os gestos das pessoas... mas não, o teu texto também sabe traduzir por palavras os sentimentos e os gestos... é igual ao texto que poderia ser escrito por um grande escritor, daqueles que vendem milhões de livros. Só descortinei uma diferença, um aligeira diferença mas que faz toda a ... diferença... é o que o teu texto é REAL!

Gisele Resende disse...

Amiga,

o seu texto me fez entrar nessa dura realidade em que encontramos nos Prontos socorros e nos quartos dos hospitais... Idosos que lá estão muitas vezes por falta de amor, onde a doença passa a ser apenas uma desculpa, enquanto em casa poderiam ser tratados com carinho e o aconchego do lar... e quantas vezes, nós, enfermeiros fazemos esse papel, em dar as refeições, escutar as histórias, fazer os aseios, ajudá-los a caminhar... Me fez recordar algumas cenas dessa minha trajetória em que também fiquei a pensar no meu futuro, e dos meus Pais.

Seu texto sempre muito bem claro nos fazendo entrar em um universo repleto de emoções!

beijinhos

Gisele

Virgínia do Carmo disse...

Dói muito saber que estes dramas são reais... Que seres nos cercam, afinal?...

Beijinho comovido

. intemporal . disse...

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. rendo.me comovido perante a grandeza deste texto, que não é, nem mais, nem menos, do que o retrato empírico de todos os dias .

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. de tantos os dias .

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. é tão triste sermos farrapo .

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. em des.uso somos ainda a voz que chora em surdina contra o abandono .

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. maria joão, os meus sinceros parabéns .

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. um beijo .

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. paulo .

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MCampos disse...

É tão triste, quando assim acontece. Ver os filhos, friamente, negar a partilha do sentimento, da presença. O seu texto relata a realidade de tantos dos nossos idosos. Presenciei algo parecido, num destes dias, na urgência do Hospital de São José... comovente e duro de assistir.

Um beijo, Maria João.

A.S. disse...

João,

Fragmentos reais de uma vida dorida, que nem o manto negro caindo sobre os ombros consegue disfarçar!
Não consegui evitar a raiva contida nem a comoção fervente!...

Um abraço querida amiga!
AL